“Os judeus não têm medo de lutar para se defender, mas não querem morrer pela guerra de Putin”. Quem o diz é Gherson Luxemburg, um velho treinador de boxe de 78 anos, responsável pelo único clube de pugilismo em Jerusalém, na capital israelita, ao The Guardian. Sabe do que fala.
Gherson — mais conhecido por “Grisha”, que em hebreu significa “guardião vigilante” — diz que tem visto passar pelo seu ginásio cada vez mais israelitas recém-chegados da Rússia e da Ucrânia. Além das origens, partilham uma vontade comum de fugir ao conflito entre os dois países.
Desde o início da invasão, 13.000 judeus ucranianos saíram do país rumo a Israel, ao abrigo da Aliá, a política de imigração que permite a membros da diáspora judaica retornar ao Estado israelita. Na Rússia o número é ainda maior — são já mais de 26.000, que é como dizer que um em cada oito judeus russos fugiram do país com o começo da guerra.
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Entre eles, conta-se o exemplo de Alla Pugacheva. Um ícone da música pop na era soviética, e um dos maiores nomes da indústria musical russa, a cantora anunciou na semana passada a sua saída do país, após o marido ser incluído na lista de inimigos de Vladimir Putin. Pugacheva, também ela uma opositora do regime de Moscovo, publicou nas redes sociais uma foto em que, sorridente, deixou uma mensagem de apoio e de protesto:
Agradeço ao meu exército multimilionário de fãs pelo amor e apoio, pela capacidade de distinguir a verdade da mentira. Rezo por vocês e pela paz na Terra Santa. Estou feliz!”
Como consequência da invasáo, Israel agilizou o processo de Aliá para ucranianos, que são neste momento classificados como refugiados. Os russos, por outro lado, não beneficiam desse estatuto, e o aumento brutal de pedidos tem assoberbado a agência de imigração de Israel — segundo o jornal inglês, são 35.000 os cidadãos russos em lista de espera, a juntar aos já mencionados 26.000 que completaram o processo de emigração.
A situação destes migrantes tem vindo a tornar-se mais uma arma de arremesso na delicada teia diplomática entre a Rússia e Israel. Se por um lado, este último tem assumido uma posição de relativa neutralidade no conflito — contando com a cooperação de Moscovo no teatro de guerra na Síria — por outro, como aliado dos Estados Unidos, tem contribuído para o desenvolvimento de armamento que tem como destino os países da NATO, e a própria Ucrânia.
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O clima de tensão entre as duas potências aumentou quando, durante o verão, a Rússia ameaçou fechar o ramo da Agência Judaica no país. Trata-se de uma organização solidária, com ligações ao governo israelita, e que é responsável por agilizar o processo de Aliá para os cidadãos russos. O futuro da agência é agora incerto; o primeiro-ministro de Israel, Yair Lapid, já avisou que o seu encerramento seria um golpe sério nas relações bilaterais.
Ao The Guardian, uma fonte anónima com ligações à Agência Judaica mostrou perplexidade quanto ao que motivou o Kremlin, especulando que o próprio governo possa estar em conflito interno sobre o que fazer. “O governo não é monolítico… talvez um ramo esteja a tentar abrandar o fluxo migratório, enquanto que outro está ciente das implicações diplomáticas desta ação”, afirmou.
Opositores do regime russo acreditam que a pressão sobre a Agência Judaica vai ao encontro das medidas tomadas por Putin no sentido de limitar as liberdades cívicas após a invasão da Ucrânia, e que esta se trata de mais uma das muitas organizações internacionais que foram perseguidas ou encerradas desde o início da guerra.
Para a mesma fonte, são dois os cenários possíveis que poderão resultar das movimentações do Kremlin. “Ou as pessoas vão deixar de se candidatar à Aliá por medo de represálias do governo, ou então os números vão disparar ainda mais”.
Perante esta situação, várias novas agências privadas têm sido criadas na Rússia, com o intuito de ajudar os judeus russos a conseguir a proteção da Aliá. Ao mesmo tempo, as administrações locais têm reportado aumentos brutais no número de pedidos por parte de cidadãos, de registos que comprovem a sua herança judaica. Vários destes pedidos têm sido feitos por mães que tentam tirar os filhos do país — Um lembrete de que as guerras e as crises diplomáticas e políticas escondem sempre um lado humano.
Anna Klatis, uma professora de jornalismo da Universidade de Moscovo, conseguiu isso mesmo. “Eu já tinha passaporte israelita há anos, porque sempre soube que algo assim era possível”, disse ao The Guardian. Em fevereiro, com o estalar do conflito, conseguiu com a filha de 16 anos sair do país.
Nem tudo é fácil. Anna conta que “é difícil para a filha ajustar-se uma nova realidade, e ter de aprender hebreu para estudar”. “Talvez até tenha de fazer serviço militar aqui”, sublinha. Apesar disso, é perentória quando confrontada com a alternativa: “Não a podia deixar crescer num sítio onde as liberdades desaparecem de dia para dia”.