Se não tivesse havido pandemia e confinamento, talvez François Ozon nunca tivesse filmado “Peter von Kant”. Foi devido aos constrangimentos impostos pelo combate à Covid que o realizador francês decidiu concretizar a ideia de rodar uma versão livre, e no masculino, do filme de Rainer Werner Fassbinder “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” (1972). Ela tornou-se ideal para fazer em tais circunstâncias porque a história original é toda passada no mesmo espaço fechado, a casa/”atelier” da protagonista, uma tirânica e arrogante estilista de sucesso que tem uma relação com a sua submissa assistente e empregada, e a troca por uma deslumbrante jovem que quer ser modelo.

[Veja o “trailer” de “Peter von Kant”:]

https://www.youtube.com/watch?v=WXe6yT3ERgw

Rodado em apenas 10 dias, “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” é um filme autobiográfico. Por interpostas personagens femininas, Fassbinder fala do caso que teve com o actor El Hedi ben Salem, protagonista de “O Medo Come a Alma”. Isto deu também a François Ozon motivo para avançar com esta adaptação em que a personagem principal, Peter von Kant, é, para todos os efeitos, Rainer Werner Fassbinder, interpretado por Denis Ménochet (quase um sósia do realizador alemão), e ambientada na casa do autor de “Lili Marleen”, onde ele tem também um pequeno estúdio de filmagem e montagem (recorde-se que em 2000 Ozon havia transformado em filme — e muito bem — uma peça incompleta de Fassbinder, “Gotas de Água Sobre Pedras Escaldantes”).

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[Veja uma entrevista com François Ozon:]

O Peter von Kant/Fassbinder de François Ozon é excessivo nos gestos, gostos, emoções e sentimentos, e instável, ora cortês e afável, ora prepotente e tirânico. Vive com um assistente, o lingrinhas Franz (Stefan Crepon), que humilha e maltrata sem que este diga uma palavra ou solte uma queixa, mas está sempre atento a tudo que se passa em redor (ele é também como que o representante do espectador dentro da fita). Através de Sidonie (Isabelle Adjani), uma grande atriz sua amiga que, segundo ele, se “vendeu a Hollywood”, Peter conhece o jovem e belo Amir (Khalil Ben Gharbia), por quem se apaixona loucamente e que promove como ator. Só que Amir é promíscuo e aproveitador, e uma vez lançado, acaba por deixar Peter, que fica devastado.

Pela casa de Peter von Kant passam também a sua filha Gabriele (Aminthe Audiard), que vem de férias no colégio da Suíça onde estuda, e que não gosta de Amir nem da doentia dependência amorosa que o pai tem para com ele; e a mãe de Peter, Rosemarie, interpretada por Hanna Schygulla, a atriz de eleição de Fassbinder (até se ter zangado com ele após a rodagem de “Lili Marleen”, em 1981, um ano antes da sua morte) — e que, faz agora 50 anos, interpretou o papel da jovem que Petra Von Kant seduz no filme homónimo.

[Veja uma cena do filme:]

A sensação que “Peter von Kant” deixa é de um filme em segunda mão. Estamos perante um “pastiche” com troca de sexos, menos claustrofóbico e denso na atmosfera física e emocional, mais ligeiro no tom melodramático, e mais caricatural na conflitualidade entre as personagens e na representação destas, sobretudo a do próprio Peter (Denis Ménochet fica muito aquém, da brutalidade latente à sofreguidão existencial, do verdadeiro Fassbinder, que além de ter um estilo de vida “kamikaze”, uma capacidade de trabalho sobrehumana e uma criatividade em jato contínuo, era um verdadeiro ogre, sendo lendária a forma como maltratava próximos e colaboradores), do que a fita original.

E ficamos também com uma certeza. Se Rainer Werner Fassbinder, que morreu de um ataque de coração causado por uma “overdose” de cocaína e soníferos a 10 de junho de 1982, tivesse vivido e continuado a trabalhar (teria agora 77 anos), seria hoje um cineasta irremediavelmente “cancelado”. Ver o filme biográfico “Enfant Terrible”, de Oskar Röhler (2020), para perceber como uma personalidade controversíssima e um artista autenticamente disruptor como ele só poderia ter existido, trabalhado e prosperado entre as décadas de 60 e 80.