É o primeiro romance de Carlos Tê desde 1999, altura em que lançou O Voo Melancólico do Melro pela Assírio & Alvim. Natural do Porto, o autor de 67 anos escreveu ainda um livro de contos (Contos Supranumerários, 2001), um de poesia (Penso Sujo, 2003) e duas peças (Três Peças em Volta de Canções e Um Monólogo sobre Futebol). Além disso, enquanto letrista, é talvez o maior nome em Portugal, tendo escrito letras para álbuns de Rui Veloso, Clã, Cabeças no Ar, José Mário Branco e Jorge Palma, entre outros.

Em 2022, eis que surge Arquibaldo, com chancela da Porto Editora. Aqui, veicula-se uma história através de Francisco Frade, que trabalha como assistente social em bairros da periferia do Porto. Não se sabe exactamente onde, mas nem importa, o que importa é que são bairros que o Estado Providência tenta mitigar. O cenário já é por si só rico e Carlos Tê consegue levar à narrativa personagens e assuntos diferentes que compõem um quadro completo. Esse quadro, aos bocados, transforma-se na realidade que a pouco e pouco consome a personagem, construída com laivos de herói. Há, nas falas de Francisco Frade, sempre uma dimensão épica, um laivo poético, uma fuga para uma ideia taxativa. Esta composição da personagem está particularmente influenciada pelo seu herói de infância, que é também um alter ego: Arquibaldo. É este quem dá nome à narrativa, é um “cavaleiro da Casa do Bem”, e existe numa realidade paralela e impossível. Mas, verdade seja dita, o substracto e o movimento que a personagem trazem já têm densidade suficiente para que se pudesse dispensar a ideia de um herói.

Enquanto Francisco Frade deambula por uma sociedade apressada, também o leitor o faz. Na narrativa, entram assuntos-chave da coetaneidade, e por vezes entende-se que a personagem, em simultâneo dramática e romântica, é um veículo para lhes chegar, assumindo-se o fôlego que o romance pode ter. Assim, surgem no romance conversas sobre colonatos ilegais na Cisjordânia ou o Lebensraum, o “espaço vital para Hitler no leste eslavo” (p. 11). Se, por um lado, se sente um excesso de intelectualização nas interacções entre as personagens, por outro percebe-se que a construção de Frade, sempre a pender para o épico, as justifica. E, com isto, parte-se de alguém que sonhara escrever banda desenhada e tocar saxofone e que, apesar disso, se tornara em assistente social para o plano em que a personagem interage com outras. É através desta interacção que se traz não apenas a vida de todos os dias, mas também a vida que houve e possibilitou esses dias. Nisto, Carlos Tê foi hábil a misturar os movimentos e a tecer os pontos cronológicos em que a narrativa mexe.


Título: “Arquibaldo”
Autor: Carlos Tê
Editora: Porto Editora
Páginas: 216

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A ponte no romance para assuntos como colonatos ilegais é a mãe de Francisco Frade. Com ela, o autor pôde levar ao enredo a vida de uma refugiada checa, judia, que fica em Portugal, 500 anos depois de os seus ascendentes terem sido expulsos da Península Ibérica. A partir daí, temos as consequências dessa opção, numa altura em que poucos ficavam depois da segunda guerra mundial, dada a natureza hostil do regime. Com isto, o autor pôs-se na pele de uma refugiada judia nos anos 40 – e também assim pôs a sua personagem, já que o livro segue o olhar do filho, agora a braços com o conhecimento do passado. Francisco Frade tenta perceber quem era a mãe e também o que era ser judeu, assim como encontrar o significado dos silêncios. A mãe, em viva, pouco lhe dizia, o passado parecia-lhe permanentemente uma coisa morta. Agora, em busca das raízes, não de si, mas de um povo, Frade vai tentar entender a fuga permanente dos judeus, assim como um permanente olhar de lado em cima deles.

Com isto, o questionamento ultrapassa o biografismo ou a dimensão familiar, já que Frade questiona o passado do país, pelo menos desde a expulsão de judeus até ao seu acolhimento no decorrer da segunda grande guerra. Chegados de uma parte da Europa mais culta, eram vistos como um perigo pela tacanhez do regime salazarista, que temia que o cosmopolitismo que traziam pudesse agitar Portugal. Nisto, a opção de contar a história de um ponto de vista contemporâneo permitiu também ao autor deixar explícita a estranheza sobre o passado.

Francisco Frade, ao lidar com a vida dos sem-abrigo ou refugiados, trouxe à narrativa reflexões sobre o Estado Social, que aqui aparece como baluarte da civilização, e isto num contexto em que se vai entendendo que a assistência social começa a ser posta em causa. O que não passa ao lado é o paralelismo, já que se parte de um contexto em que a Europa se punha em guerra e em que o regime nazi animalizava e aniquilava judeus, criando tanto movimentos ímpares de solidariedade como movimentos de cada por si. Para mais, temos o contraponto com uma Europa com pendor civilizacional. É aqui que a questão da assistência social contrasta com o liberalismo, fazendo-se também o contraponto geográfico entre uma ideia de Europa e países como os Estados Unidos ou o Brasil. No passado que Francisco Frade busca, ainda se vê a miséria que se espraiava em Portugal durante a ditadura, assim como a posterior ajuda de outros países da Europa para fazer o país crescer.

Por todo o romance, nota-se a cultura do autor, e também a busca sociológica das raízes da matéria. O tom épico é assumido tanto nos diálogos como na procura do alter ego Arquibaldo. Os capítulos, todos curtos, são permanentemente pontilhados por um aguçado sentido de humor e uma constante sensação de movimento, tanto geográfico como temático, que, de forma orgânica, liga os pontos que Carlos Tê soube levar para a narrativa.

A autora escreve com a ortografia anterior ao acordo ortográfico