Um doente que esteve internado nos cuidados paliativos do Centro Hospitalar de Leiria perpetuou em fotografia aquilo que via da janela do quarto e está a ser equacionada a realização de uma exposição dos seus registos.

Da janela do último quarto de um dos corredores da Unidade de Internamento de Cuidados Paliativos do Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes Oliveira, do Centro Hospitalar de Leiria, Vítor Domingues registou em fotografia a variedade de pássaros que diariamente pousavam na árvore em frente.

A beleza das imagens foi mostrada num encontro que o serviço realizou há cerca de duas semanas e os elementos do projeto “Aqui contigo – O som como último colo”, da Sociedade Artística e Musical dos Pousos (SAMP), imprimiram e emolduraram várias fotos que lhe iam oferecer no dia em que a agência Lusa acompanhou os músicos, em 27 de outubro.

“O primeiro sentimento que tive foi: vim tarde demais”, desabafou a coordenadora do projeto “Aqui contigo – O som como último colo”, depois de se ter deparado com outra pessoa no quarto de Vítor Domingues e confirmado a sua morte.

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Acredito que ele está a ver, onde estiver, e vamos fazer uma exposição com as suas fotos, porque queremos mostrar que é possível nos últimos dias [de vida] fazermos arte no seu todo. E arte bonita”, acrescentou, deixando expostas numa mesa as várias imagens que trazia.

O hospital assume a possibilidade de avançar para a uma exposição também como forma de homenagear o “senhor Vítor, uma pessoa muito especial”, classificou Raquel Gomes.

“Ele descobriu uma arte depois de saber que a sua vida estava por pouco tempo e resolveu dedicar-se à fotografia, coisa que nunca lhe disse nada. Quando chegámos, percebemos que ele tirava fotografias extraordinárias e fotografava tudo o que é vida que está à sua volta”, relatou.

Segundo Raquel Gomes, as fotos são “lindíssimas, de pássaros que pousam numa árvore que estava junto de duas janelas do seu quarto”.

É extraordinário como é que uma pessoa que está nos seus últimos dias consegue captar tanta vida e transmitir e partilhar tanta beleza nas suas fotografias. Isto é uma lição. Hoje, vínhamos muito felizes e contentes por lhe trazer as suas fotos em molduras e apanhámos o choque”, reconheceu, com as lágrimas nos olhos.

As mesmas fotografias foram também emolduradas e oferecidas a José Manuel Oliveira, outro doente paliativo que se encontra acamado em casa, mas que sempre foi um apaixonado por pássaros.

A surpresa ao senhor Zé emocionou-o a si e à mulher. “Não esperava. Há pássaros que ele desconhecia que existiam em Portugal e agora vai pedir-me para ir ver na internet que pássaros são. Dantes, ele criava pássaros e vendia. Ele ficou comovido e vai-me já pedir para expor” as fotografias, adiantou à Lusa Fátima Silva, depois de os artistas da SAMP fazerem a surpresa.

A equipa da SAMP também surpreendeu Rebeca Aizic, uma cantora brasileira que teima em fintar a morte e que faz da música a sua força de vida, para sobreviver a um cancro que a levou aos paliativos, embora esteja agora em casa, na Praia da Vieira, no concelho da Marinha Grande, distrito de Leiria.

“Queremos contratá-la, Rebeca, para nos acompanhar, nos concertos de homenagem ou nestas visitas, naquilo que conseguir fazer”.

Ao ouvir estas palavras, Rebeca aceitou de imediato o desafio e a felicidade ficou estampada no seu rosto. A visita dos músicos Raquel Gomes, David Ramy e Umberto Giancarli alegrou todo o quarto da doente, cuja filha, também cantora, tocou guitarra e cantou com a mãe.

Estou super feliz. Era tudo o que eu queria, porque é ajudar o próximo. É uma força que eles me estão a dar, para me tirar daqui um pouco, deste ostracismo. Para não pensar muito, fico o dia inteiro a tocar. Pego na viola, toco pandeiro, fico aqui entretendo-me. Se não fosse isso, estava difícil”, assumiu à agência Lusa, sempre com a alegria estampada no rosto, apesar de algumas dores no peito e da dificuldade em respirar que a doença oncológica lhe provoca.

Apontada pelos músicos da SAMP como uma “força da natureza”, Rebeca Aizic afirmou que a sua força vem de “uma vontade de viver”.

“Não quero morrer. Não. Não tenho a menor intenção. Eu tenho uma fé descomunal no meu Santo António e sei que vou conseguir vencer mais essa batalha”, disse a mulher de 60 anos, que pretende “chegar aos 70 anos”.

Rebeca confessou que são os momentos com a SAMP que lhe dão vida e não está tão assustada por lhe terem diagnosticado uma doença que já estará numa fase adiantada.

“Isso não me assusta, porque a música traz a cura. Quando esse grupo foi a Alcobaça e eu ouvi… pensei: há alguém afinando uma viola? Ou será que eu morri e estou a escutar os anjinhos? Depois disso, começámos a encontrar-nos”, revelou.

Para a doente, a música “é tudo” e por isso nunca o deixou de fazer.

“Posso cantar mais para trás um pouquinho, diminuir um pouco a cadência do samba, não fazer muito para frente, respirar. Se respirar um pouquinho mal, fico com falta de ar, por isso, tenho de respirar no momento certo”, explicou.

Como forma de ocupar a mente, Rebeca está a escrever uma letra sobre os cuidados paliativos, porque, “apesar de as pessoas pensarem que é para o fim da vida, não é”.

“É para dar qualidade de vida a quem precisa. Não é só oncologia. As pessoas têm de parar de ter medo de achar que é morte. Eu entrei no hospital com 38 quilos e recuperei oito quilos em 27 dias nos paliativos. O paliativo é mesmo para botar a gente para cima, junto com a pneumologia, a quem agradeço sempre, o hospital de dia e a Liga do Cancro”.

E a SAMP, “essas pessoas maravilhosas do grupo”.

“Foram o meu boom, o meu renascimento”.