Quando éramos peixes é o segundo volume da Trilogia dos Pares, de José Gardeazabal, seguindo-se a A melhor máquina viva (2020). O romance, que parece ter um núcleo de personagens claro, é, regra geral, difuso, consequência da estratégia do autor, que aponta para o simbolismo nas descrições e nos diálogos.

Em Quando éramos peixes, temos Simone e Tomass, arquitecta e engenheiro, um casal em reconstrução, os dois com uma relação com a mesma mulher, Camille. Permanentemente, percebemos que são veículos para interrogações sobre a construção social simbólica do feminino e do masculino, sendo todo o romance uma longa interrogação. O casal, que terminou uma ponte nas margens da Europa, entre Ocidente e Oriente, também permite que haja na narrativa uma dimensão geopolítica, em que se comparam prosperidades e hábitos antigos. Mas, como tudo é simbólico, a realidade vê-se só num fio ao longe, e entende-se que até os aspectos do quotidiano – as profissões – servem para possibilitar a narrativa, mais do que para fundá-la.

Um exemplo disso é a analogia constante entre a construção da ponte e a possibilidade da reconstrução de uma ponte dialógica entre os dois. Sendo um casal há muito tempo, alguma coisa ali se atenuou, embora essa lassidão também traga laivos caricaturais, já que, em vez da realidade, se vê um paralelismo. Ao mesmo tempo, o autor traz para a narrativa uma relação de quase antonímia permanente, entre um passado com traços despóticos e autocratas e uma visão do presente com traços de ironia. A questão da fronteira é tratada de forma mais simbólica do que real, no que parece uma estratégia assumida de teatralização dos elementos. Além disso, como parece que o contexto é que é o elemento interno da estrutura do romance, cabendo às personagens possibilitar o enredo, estas últimas passam a elemento externo, já que, ao leitor, nunca chega a ser possível fazer a radiografia de quem tem à frente. A relação leitor-personagens parece existir via procura da dimensão simbólica de cada gesto, palavra ou explicação. Os diálogos nunca chegam a ser pessoas a falar, antes colocações quase maquinais de frases-chave sobre género ou capitalismo. Para além de improváveis – impossíveis –, chegam a uma aparente aleatoriedade:

– Já tinha saudades de ser escatológica. E tu?
– Eu também.
– Escatológica é uma palavra tão bonita que nem precisa de explicação. O que significa para ti ser escatológico?
– Prefiro não dizer. É uma coisa muito pessoal.” (p. 69)

Ao mesmo tempo, parecem servir apenas o propósito de veicularem mantras:

– Tomass, o século vinte e um será o século dos acidentes.
– Isso assusta-me.
– O século vinte e um será o século do sexo.
– Isso não me assusta.” (p. 29)

Os diálogos são tão breves que nunca nos sentamos à mesa, nunca nos deitamos na cama com as personagens. Aliás, são tão breves e metafóricos que nem as vozes lhes ouvimos. Com isto, e com outros fragmentos, também breves, o romance sabe a transitório, já que não pára em cenas, e o leitor não cria empatia via desenvolvimento psicológico e emocional das personagens, transformadas na narrativa em artifícios.

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Título: “Quando éramos peixes”
Autor: José Gardeazabal
Editora: Companhia das Letras

Páginas: 338

A escrita é fragmentada, o que implica que os fragmentos pareçam sempre desconexos e que caiba ao leitor montá-los. Volta e meia, a voz do narrador imiscui-se para a crítica, e é a crítica que o leitor vê, já esquecido de Simone, Tomass ou Camille, nestes que são os pontos mais fortes do romance, ainda que não o constituam. Um exemplo:

Na rua, a juventude passeava, exagerada e aumentada nos seus atributos, os corpos delgados ao gosto de cirurgiões anónimos contratados no estrangeiro. Havia desmesura na exibição das diferenças sexuais, e o petróleo e o dinheiro faziam o resto. A sala abarrotava de diferenças sexuais. Sorrisos, embates iminentes, tudo ali era um zoológico feliz onde se acoitara uma espécie encolhida depois de conquistar uma arca de noé. O dilúvio para trás, os animais atirados borda fora, esta era a hora do espanto e do aperfeiçoamento, a hora do toque antes da multiplicação.” (p. 124)

Além disto, há interrupções dos diálogos que suspendem a narrativa, e então os capítulos curtos, mas em arco, suspendem-na de novo. Percebe-se, da parte do autor, a busca de um efeito estético-poético, o que poderá resultar com leitores que procurem o simbólico ou a fruição da frase, embora afecte quem veja no romance a busca de uma realidade crua, despida de artifícios. As personagens parecem existir num plano extra-narrativo, pontilhando a prosa de mais um simbolismo e obrigando o leitor a, permanentemente, escavar a carga emocional. Por vezes, porque não há habituação ou intimidade com as personagens, não se percebe de onde vem o drama, a densidade emocional, como quando Tomass diz “Estou a sentir a minha masculinidade líquida” (p. 36).

As sensações e os pensamentos das personagens são confusos, assim como o é a relação do casal (e do trio), também difusa, devido à estratégia do autor, de a construir via símbolos. Com isto, o leitor vê uma representação, não uma vida, e sai da leitura como quem viu uma peça de teatro. Não só tem de suspender a crença como dá por si a ter de fingir que o que vê é o que o autor quer que veja.

Sendo todo o romance apresentado como um código, fica-se com sabor de fórmula, num romance que fica num limbo entre o texto e o subtexto, com a sensação de que o texto quer ser subtexto. Com uma construção sensorial que parece procurar a sub-camada da sensação, sente-se que o simbolismo rouba lugar à vida e que resta apenas a encenação.

No meio disto, José Gardeazabal parece ter conseguido cumprir aquilo a que se propôs: um romance em que o elemento simbólico impere e em que o leitor patine entre o que vê e o que está lá. Fá-lo com bom domínio narrativo técnico, boa capacidade de construção frásica e bom vocabulário, percebendo-se ainda a vontade de integrar vários eixos no enredo, sendo estes o da individualidade íntima ou o do contexto social, não deixando de lado a crítica ao status quo que vai formando.

A autora escreve segundo a antiga ortografia