Há certas atividades em que a prática torna a execução gradualmente mais fácil: quanto mais um basquetebolista lançar ao cesto de determinada posição, maior será a probabilidade de melhorar o tiro daquele ângulo; um programador será tão melhor quanto mais programar – não só aprende a identificar código limpo e bem organizado como, graças à experiência que vem com os anos, começa a reconhecer as exceções, os fundos falsos, as areias movediças onde um algoritmo pode tropeçar.
Claro que quanto mais se sabe, maiores e melhores são as questões que se colocam sobre cada mister e os desafios tornam-se lentamente mais complexos; mas quando se olha para trás, vê-se uma evolução clara desde o primeiro dia em que se começou a lançar ao cesto ou a bater código e o nível de eficiência e criatividade que o tempo, o empenho e a vontade de aprender trouxeram.
É dúbio que o mesmo possa ser dito da escrita de obituários – sim, há requisitos obrigatórios, estruturas clássicas narrativas em que podemos apoiar-nos, diversos tipos de tom que podemos adotar, tudo ferramentas que podemos usar com eficácia burocrática caso tenhamos alguma distância emocional para com o objeto do texto. Mas o que acontece quando existe uma filiação a quem morre? Como se diz ao mundo não apenas que faleceu determinada pessoa que fez a coisa X ou Y, mas sim que ela tinha uma importância desmesurada na nossa vida — e na de tantos outros?
Tinha 18 anos quando ouvi I Could Live In Hope, o disco de estreia dos Low, de 1994, pela primeira vez – e desde então, nos quase 30 anos que se seguiram, eles nunca saíram da minha vida; tornaram-se, mesmo, uma espécie de primos afastados, aquele tipo de primo que vive longe, mais velho, que nos ouve e tem sempre uma palavra de esperança sem um pingo de condescendência.
Primos porque, apesar de terem começado como trio, os Low sempre foram um duo, uma dupla, um (literalmente) casal, Alan Sparhawk e Mimi Parker, que vieram de Duluth, Minnesota, mas por vezes pareciam ter saído do fim do mundo. A dor reside no tempo verbal “foram”, que uso porque no domingo, 6 de novembro, após lutar desde dezembro de 2020 contra um cancro nos ovários, Mimi Parker, baterista e vocalista dos Low, morreu, aos 55 anos – era casada com Alan e ambos tinham dois filhos, Hollis e Cyrus.
[“Days Like These”, numa sessão para o site Stereogum, em 2020:]
O que menos importa agora é se os Low vão continuar, com um ou uma música contratada para fazer as vezes e vozes de Mimi, se Alan enceta uma carreira a solo – quando um músico criou um corpo de canções tão inusitado e capaz de escavar tão fundo nos escombros da humanidade, a melhor homenagem que podemos fazer é ouvi-las, ir buscar cada disco e pôr a tocar, passá-los a quem não os conhece. O corpo pode ter desaparecido para parte incerta, mas o músico permanece enquanto for ouvido.
Fomos muito poucos a ouvir os Low quando eles surgiram em 1994, com I Could Live In Hope, mas de imediato apercebemo-nos que algo de muito especial estava a acontecer ali: as canções eram lentas, estupidamente lentas, as vozes (de Alan, guitarrista e compositor, e de Mimi) eram quase sussurradas e nessa altura ainda não tinham desenvolvido por completo a capacidade de criar harmonias arrepiantes, cuja beleza se deve (estou em crer) ao amor profundo que unia o casal.
Era indie rock mas indie rock como nunca tínhamos ouvido, possuído pelo peso da culpa cristã, pela angústia existencial de quem se reconhece pecador e tem dificuldade em ultrapassar os seus defeitos, mas anda à procura de uma qualquer vaga luz, de uma saída não de emergência, mas de esperança.
Os dois discos seguintes (Long Division, de 1995, The Curtain Hits the Cast, de 1996) mantinham o mesmo padrão de som – como uns Joy Division que tivessem tomado Xanax antes de irem cantar para a missa. Mas gradualmente começaram a mudar: o disco seguinte, Secret Name, de 1999, introduzia eletrónica pela primeira vez (o que vieram a explorar mais profundamente nos mais recentes Double Negative, de 2018, e Hey, What, de 2021), e quando chegaram ao extraordinário Trust, de 2002, já havia ruído com melodias pop (“Canada”), confissões que eram murros no estômago (“In the Drugs”) e esse hino espantoso que é “(That’s how you sing) Amazing grace”.
Por essa altura já não compunham apenas em primeira, e sabiam quando acelerar e desacelerar, como haviam dominado a arte das harmonias a dois, que tornaram os Low únicos desde o início. Bandas que duram 30 anos mantêm fiéis, mas por norma estes preferem os primeiros discos – tal não acontece com os Low: se para a minha geração I Could Live In Hope ainda será, talvez, o disco mais emblemático, é comum haver quem tenha como preferido Trust ou The Great Destroyer, de 2005, ou Drums and Guns, de 2007, ou Ones and Sixes, de 2015 (onde a maravilhosa “What Part of Me” encontrou morada), ou mesmo a dupla composta por Double Negative e Hey, What, quando eles exploraram mais e mais o ruído como textura para as canções.
E esse é um feito raro: uma banda que ao longo de 30 anos não para de mudar, de explorar, de procurar não novas fórmulas, mas erros mais belos. Se por norma, quando nos mantemos fiéis a uma banda por 30 anos, procuramos conforto e a reprodução das mesmas características com que a dado momento nos identificámos, com os Low não era assim: não sabíamos o que esperar e encontrávamos conforto em ver que eles continuavam a escavar terra, continuavam à procura – como se isso nos indicasse que nós também podíamos continuar a ser outra coisa, que não tínhamos de nos resignar a uma versão passada de nós próprios.
E, ao longo destes quase 30 anos, além das canções – do aspeto musical das canções – houve outra coisa, não obrigatoriamente as palavras, mas a combinação das palavras com as melodias em ascensão, profundamente influenciadas por um imaginário religioso, em que ninguém se safa de saldar em vida as dívidas existenciais mas palavras em que era notória a procura de beleza, de redenção, de esperança no humano.
O que torna escrever este obituário uma tarefa árdua: por vezes tive a impressão de que os Low me carregavam às costas, que fizeram as vezes de amigos, namorada, pai e mãe e tios, quando estes não estavam lá ou ficariam baralhados com a minha baralhação. Conhecem o dito “As canções salvam?” O meu lado objetivo faz-me pender para não acreditar nisso; os Low dão-me a certeza do contrário.
É por isso que sentimos a morte de Mimi como a morte de uma prima ou uma tia que vivia longe; uma qualquer relação estranha e a única criou-se entre eles e nós: eles traziam notícias do outro lado da cortina, mostravam os esqueletos que todos tínhamos no armário, e nós agradecíamos por não termos de desenterrar os cadáveres do jardim e por, no fim de cada canção, haver humanidade. Como todos os grandes músicos, os Low recordaram-nos que somos seres complexos e complicados, que comportamos o poder de fazer o bem e de fazer o mal em igual medida, mas que há escapatória, que podemos melhorar, que vamos sempre a tempo.
Há muitos anos, numa pequena terra em Duluth, Mimi começou a cantar música country e gospel com a sua irmã e encontrou na música uma escapatória; mais tarde, quando conheceu e se apaixonou por Alan, que precisava tanto ou mais da música como fuga do que ela, formaram os Low. Esta música nasceu da procura de significado e do amor de ambos. E talvez fosse isso que tanto nos comovia: ao ouvi-los acreditávamos que no fim o amor era capaz de sobreviver a tudo e tornar-nos melhores.
A melhor homenagem que podemos fazer a Mimi é continuar a acreditar no poder salvador da música – e do amor. Adeus, Mimi. E obrigado.