Quando esta quinta-feira anunciou que não ia recandidatar-se à liderança do Partido Democrata na Câmara dos Representantes — cargo para que foi eleita em 2002, estavam também os republicanos em maioria na câmara baixa do Congresso dos Estados Unidos —, Nancy Pelosi fez uma referência ao “sangue novo” de que o partido precisa e os democratas não demoraram a apontar o dedo a Hakeem Jeffries, representante de Nova Iorque e presidente do caucus democrata desde 2019.

Se Pelosi, de 82 anos, se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo; Jeffries, de 52, poder-se-á tornar o primeiro afro-americano a liderar um partido no Congresso dos Estados Unidos. E reduz em muito a média de idades na cúpula do partido.

Depois do adeus de Pelosi, “uma oradora histórica que alcançou feitos incríveis”, enalteceu Seth Moulton, representante de Massachusetts que em tempos lhe tentou tirar o lugar, os democratas mostraram-se “prontos para um novo capítulo”. E, questionados pela CNN, foram vários os que indicaram o nome do advogado de ascendência cabo-verdiana, criado em Brooklyn, como favorito para o lugar.

House Speaker Nancy Pelosi To Announce Her Future Plans

Nancy Pelosi e Hakeem Jeffries abraçaram-se esta quinta-feira no Capitólio, depois de a líder dos democratas no Congresso anunciar que não se recandidata

“Sou um grande fã do Hakeem. Penso que ele é extremamente inteligente, é uma boa pessoa para trazer o consenso para o caucus. Acho que será um excelente líder”, disse Mark Pocan, representante do Wisconsin. ”

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Para mim é muito claro que Hakeem Jeffries é a pessoa em quem vou votar e em que vou levar a Bancada Negra do Congresso a votar. Nem sempre falo por todos, mas sinto-me muito à vontade para dizer que acredito que todos os membros da Bancada Negra do Congresso votariam em Hakeem Jeffries“, garantiu por sua vez Joyce Beatty, represente do Ohio que é também a presidente do chamado “black caucus”, a bancada negra dos democratas no Congresso.

Agora só falta mesmo que o próprio, que esta quinta-feira fez questão de abraçar Pelosi depois do anúncio da sua não recandidatura, revele se vai ou não avançar.

Da devoção à G.O.A.T. à comparação com Barack Obama (passando pelo rap)

Quando os jornalistas presentes no Capitólio lhe perguntaram quando iria fazer o anúncio, Jeffries fugiu à questão mas também não disse que não iria acontecer. Respondeu que queria “passar o resto do dia a processar a natureza histórica da porta-voz Pelosi e a oportunidade que todos tivemos de servir com ela”. “Tem sido uma experiência incrível”, acrescentou.

Mais tarde, no Twitter, o presidente do caucus democrata, escreveu um post a agradecer-lhe “tudo o que fez pela América”. “A porta-voz Nancy Pelosi é a G.O.A.T”, escreveu ainda, transpondo para a política a expressão comummente usada no desporto para definir o melhor de todos os tempos.

A proximidade entre ambos não é propriamente novidade para ninguém nos Estados Unidos: quando mais não seja porque, em 2020, foi Jeffries quem Pelosi escolheu para liderar o processo de impeachment ao então Presidente Donald Trump.

Esta quinta-feira, num perfil em que também o aponta como o mais que provável próximo detentor do cargo, o Washington Post descreve Hakeem Jeffries, que em 2019 se tornou o mais jovem membro de sempre da liderança democrata, como “um auto-proclamado progressista que forjou relações com figuras do establishment democrata em Washington, enquanto navegava pela esquerda em ascensão no seu quintal”.

Eleito para a Câmara baixa do Congresso pela primeira vez em 2012, dois anos mais tarde Jeffries chegou a ponderar concorrer ao cargo de mayor de Nova Iorque, numa tentativa de afastar o também democrata Bill de Blasio, mas acabou por não formalizar a candidatura — apesar dos apoios que também não tardaram a surgir por parte de algumas alas do partido.

Na altura, aos 45 anos, era descrito como “democrata da próxima geração com um grande interesse na reforma da justiça penal”. Uns anos antes, tinha chegado a ser descrito como o “Barack Obama de Brooklyn”. “São ambos afro-americanos, são ambos muito bonitos, e são ambos altamente inteligentes”, disse ao Washington Post em 2012 Ed Koch, ex-mayor de Nova Iorque. “Ambos têm sorrisos maravilhosos”, acrescentou ainda.

“É uma pessoa que trabalha com facilidade nas comunidades negra e branca. Acho que o Hakeem representa uma evolução natural no passado dos políticos afro-americanos. A geração anterior de políticos afro-americanos teve as suas raízes nos movimentos de direitos civis da década de 1960, mas a geração do Hakeem cresceu numa América mais multicultural e, nesse sentido, as suas origens e perspetivas são diferentes”, consubstanciou um pouco mais Theodore Wells, mentor do político durante os anos em que trabalhou como advogado, em Manhattan. Terá sido justamente na Paul Weiss, firma de advogados multinacional fundada no último quarto do século XIX, escreveu na altura o Washington Post, que Hakeem Jeffries conheceu os “doadores ricos” e “políticos proeminentes” que o têm secundado politicamente.

Hakeem Jeffries é candidato à liderança democrata na Câmara dos Representantes

Apesar de ter citado a Bíblia várias vezes ao longo da carreira, Hakeem Jeffries é mais conhecido por parafrasear letras de canções rap e pela devoção que tem por Notorious B.I.G., aka Biggie Smalls, o rapper de Brooklyn assassinado a tiro em março de 1997 em Los Angeles, apenas seis meses após o homicídio de Tupac Shakur.

Em 2017, no dia em que se assinalaram os 20 anos da morte do cantor, Jeffries prestou homenagem ao ídolo e conterrâneo no Capitólio. “Biggie Smalls, Frank White, o rei de Nova Iorque. Morreu hoje, há 20 anos, numa tragédia ocorrida em Los Angeles. Mas as suas palavras vivem para sempre”, começou por dizer, ao lado de um cartaz com a cara do artista, para depois entoar alguns versos de “Juicy”, o primeiro single do primeiro álbum de Notorious B.I.G.

Três anos depois, em pleno processo de impeachment, quando um dos advogados de Donald Trump lhe perguntou por que motivo estava aquele julgamento sequer a decorrer, o democrata respondeu com as acusações pendentes sobre o então Presidente — e a seguir voltou a citar a música, mas sem cantar.

“And if you don’t know, now you know” [“Se não sabes, agora sabes”], disse. Quando mais tarde lhe disseram que a confusão que ouviu nessa altura, vinda do fundo da sala, tinha sido a futura vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, a acompanhá-lo na letra, ficou satisfeito. “Pelo menos um senador dos Estados Unidos apanhou a referência. É um bom começo”, reagiu com ironia Hakeem em entrevista ao USA Today.

Em agosto de 2021, a Atlantic já dizia que Hakeem Jeffries “podia acabar a ser o primeiro presidente negro da Câmara dos Representantes”. Uma vez que a maioria foi perdida nas eleições intercalares, não será esse exatamente o cargo, mas o processo será o mesmo. Na altura, o democrata não quis comentar a possibilidade, mas, confrontado com as críticas dos que o acusam de não ser um verdadeiro progressista, fez questão de garantir quem é e o que tenciona fazer.

“Há uma diferença entre democratas progressistas e socialistas democráticos de extrema-esquerda. Não é uma distinção que eu esteja a traçar, eles é que o fazem”, disse. “Sou claramente um democrata progressista negro preocupado em abordar a injustiça racial, social e económica com a urgência feroz do agora. Essa tem sido a minha carreira, essa tem sido a minha viagem, e continuará a ser à medida que for avançando, ao longo de todo o tempo durante o qual tiver oportunidade de servir. O momento em que me ajoelho perante o socialismo democrático de extrema-esquerda nunca chegará.”