Wole Soyinka, que marcou presença no Fólio este Outubro, nunca ocupou grande espaço nas estantes portuguesas. A Minotauro publicou Os intérpretes e, de resto, após uma pesquisa nos catálogos das principais livrarias online, nada mais se encontra do autor, sendo a sua vida e a sua obra em grande parte desconhecidas. Nascido em Abeokuta, na Nigéria, em 1934, Soyinka fez a escola primária na sua terra natal e o ensino secundário em Ibadã, cidade que marca a fronteira entre a savana e a floresta. Ali, fez estudos universitários, entre 1952 e 1954, mudando-se de seguida para a Inglaterra, onde se formou em Literatura Inglesa (1954-1957). Antes de voltar para a Nigéria, trabalhou no Royal Court Theater em Londres, e no seu país de origem veio a dedicar-se à dramaturgia africana.

Soyinka tem sido politicamente ativo ao longo da vida e o seu interesse pela política da Nigéria está mais do explícito em Crónicas do lugar do povo mais feliz da Terra. Por tentar mediar a paz entre os partidos em guerra, o autor veio a ser preso durante a guerra civil da Nigéria (1967), tendo sido mantido em cativeiro solitário. Após pressão internacional, foi libertado, e em liberdade nunca se calou. Ao longo da vida, esteve presente a crítica aos governos da Nigéria, em particular no que tinham de tirânico e opressivo. Durante o governo de Sani Abacha, militar que foi presidente da Nigéria entre 1993 e 1998, o exercício da liberdade de expressão deixou a vida de Soyinka em risco. Por isso, o autor exilou-se de forma voluntária nos Estados Unidos.

Chegámos a 2022, há um Nobel no bolso e, desde o último romance, há ensaios, colecções de poesia e livros de memórias. Crónicas do lugar do povo mais feliz da Terra é, assim, o primeiro romance do autor após Season of Anomy, que, publicado em 1973, não conta com edição portuguesa. O novo romance foi, por isso, aguardado com grande expectativa. Ainda por cima, o projecto literário de Soyinka é ambicioso, querendo trazer para o campo literário uma Nigéria imaginada, quase alegórica, e sempre perpassada por crítica social. São 538 páginas de uma fina ironia, que domina um projeto exigente. Parte da premissa do enredo sabe logo a gore, já que há um empreendedor que sobe na vida através da venda de partes de corpos humanos, que são usadas em rituais. Mas já lá vamos. Antes disso, convém referir que o retrato de nação que Soyinka nos dá é o de um Estado onde reina a propaganda. Aliás, logo à cabeça do segundo capítulo, dá-se conta da criação de um Ministério da Felicidade por parte de um Estado empobrecido. O romance, para além de uma estrutura maleável, conta com um enredo que vai beber às camadas fundas da constituição de uma sociedade, desde a poluição largada pelo comércio de escravos ao jogo de influências em torno do ouro e do petróleo.

As personagens, por sua vez, também trazem muito à narrativa em termos de entendimento do país retratado. Em cada uma delas, vivem os eixos estruturantes da sociedade. E, ao pegar nelas, Soyinka permitiu que o leitor as visse sob um olhar caleidoscópico, mostrando a permeabilidade da influência e do poder. Assim, há personagens que catapultam elementos como a política e a religião para o centro da narrativa, metendo-os em acção na vida de todos os dias.

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Título:
“Crónicas do lugar do povo mais feliz da terra”
Autor: Wole Soyinka
Editora: Livros do Brasil
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Páginas: 544

Sir Goddie Danfere, por exemplo, é primeiro-ministro e líder do POMP (Partido em Movimento, embora a sigla venha do inglês). O POMP vai fazendo o seu caminho através de subornos, fraudes e violência. Enquanto dirigente, Danfere até poderá parecer uma caricatura, mas recentes aparições de governantes populistas, como Trump, mostram que esta caricatura bebe da realidade. Em conversa com jornalistas, Danfere afirma ter ido a todo o lado sem ter ouvido uma voz discordante, insistindo que o povo do seu país é o mais feliz da Terra. Este primeiro-ministro, claro está, está feito em representação dos governantes que Soyinka questionou a vida toda. E, claro, instrumentaliza a capacidade de projecção da sua voz para criar uma narrativa que se substitua à realidade.

No mesmo sentido, Modu Udensi Oromotaya, proprietário de um jornal, promove o voto populista, a propaganda e a chantagem. Assim, lança na narrativa o papel de uma comunicação social que tem objectivos para além da informação.

Por sua vez, o Papá Davina, também conhecido por Teribogo, é uma espécie de guru espiritual, que volta e meia envereda pela extorsão. A fraude levou-o para a religião, que se revelou terreno fecundo. Com esta personagem, temos logo a instrumentalização da palavra para controlar o pensamento. Davina defende que a perspectiva é tudo, e partindo daí cria narrativas convenientes. Partindo da aldrabice, ou de uma retórica ao serviço do engano, ilustra por si só uma grande parte do que Soyinka quis levar a este livro.

Com isto, o romance vai explorando a simbiose entre vários elementos de corrupção, que se vão alimentado do povo de um país de forma parasitária. O que este núcleo de personagens tem a dar à narrativa é, do ponto de vista sociológico, inestimável, já que, sendo três dos seus eixos fundamentais, veiculam relações de força e manipulação do Estado.

Em concomitância, temos outras personagens, que por sua vez chocam com estas três. Estas conheceram-se na Universidade uns 40 anos antes do ponto em que começa a narrativa. Juntas, tinham o pacto de, no futuro, fazerem por desenvolver a Nigéria.

Wole Soyinka: “Já não sei qual é a Nigéria real. Sei qual era a Nigéria em que cresci”

Kighare Menka, médico, queria promover uma clínica na sua terra natal. Kighare traz muito à narrativa, mais não seja pelas descrições do que viu. Cirurgião, tem habilidades para lidar com vítimas de bombas suicidas. A sua integração na narrativa permite ao romance tocar nos efeitos da acção de Boko Haram, um grupo terrorista radical islâmico que surgiu na Nigéria, introduzindo os elementos da violência entre gangues, massacres de crianças e rituais assassinos. E, por falar em rituais, podemos agora voltar ao que o faz iniciar a acção no romance. Kighare estava exausto do que via no exercício da sua profissão, mas saber que partes de corpos eram roubadas para serem vendidas fora do hospital foi a gota de água. Perante isto, recusou-se a que o seu posto de trabalho fosse o centro de negócio, decidindo-se, por isso, a boicotá-lo. É aqui que começa a surgir este novo núcleo de personagens, já que o cirurgião recorre a Duyole Pitan-Payne, um antigo colega de escola que, sendo agora um engenheiro eléctrico reputado, está prestes a aceitar uma posição nas Nações Unidas, em Nova Iorque. Pitan-Payne fora chamado para rever a infra-estrutura energética do país, concluindo que o dinheiro que devia ser usado para modernizar os serviços públicos era desviado para mãos privadas. Assim, surpreende-se ao ver que o governo, com quem tem problemas de longa data, apoia a sua nomeação. Neste cenário, os esforços iniciam-se sem que nem Kighare nem Duyole percebam a extensão da força que os rodeia. Nisto, surge ainda Prince Betadona, parte do grupo, e que, à altura em que a narrativa lhe pega, está desfeito, após torturas mentais, que por sua vez se seguiram a uma prisão. Recusara-se a esquemas de lavagem de dinheiro e a coisa dera para o torto, com o poder em vigor a considerá-lo dispensável.

Com estes elementos, Soyinka desenvolve um romance profundo, quase em jeito de thriller político, que deixa em aberto o futuro dos sobreviventes, assim como do país. A sinopse, a priori, engana logo, uma vez que parece apontar para uma narrativa em torno de Kighare, que só é mencionado volvidas algumas dezenas de páginas e só ganha corpo volvido um quarto do romance. Mas, além do que poderia ser intuído como enredo principal, temos pontos fundamentais, como a ascensão ao poder de Papá Davina, alicerçada em aldrabice, oportunismo e jogo.

Soyinka vai tentando fazer um jogo de cintura com a atenção do leitor, ao mesmo tempo que o faz com os elementos do romance, suspendendo, com frequência, eixos narrativos para introduzir novas personagens, e sobretudo cenas, que compõem um cenário longo e denso. Com isto, abdica de um ponto focal, promovendo uma experiência de leitura que pode ser caótica – e que é decerto exigente. Para mais, o romance tarda em dar o quadro de estabelecimento de relações de personagens (como o trio Menka, Pitan-Payne e Badetona). Ainda por cima, como a construção da linha temporal não é linear, as conexões não são logo evidentes. Com sucesso, e exigindo uma leitura atenta, Soyinka vai cruzando várias histórias diferentes, interligando-as num todo orgânico.

Se o título é irónico, o mesmo se pode dizer da escrita, que nisso não cede. Soyinka aponta o dedo à corrupção, escrevendo aqui e ali sobre este ou aquele “acidente”, e então mostrando o que vê: os festivais, os prémios, as festanças, os falsos motivos de alegria. Perante poderosos manipuladores, o povo que é gado enganado. Com uma prosa rica, sumptuosa, maximalista, e personagens exageradas que cumprem o seu propósito alegórico, Soyinka faz uma proposta satírica, pejada de alusões subtis, num tom de permanente irreverência que bebe de uma grande capacidade inventiva. Com Crónicas do lugar do povo mais feliz da Terra, o leitor depara-se com a ganância como forma de destruir um país, e com isso um povo.

Soyinka enfrenta o poder e o cinismo num romance que, ao invés de ser panfletário, dá uma visão de um país a solo – e essa visão é, por isso, uma forma de o questionar e de lhe apontar o dedo. Não descurando o trabalho de desenvolvimento das personagens, todo o substrato é uma camada sólida, estando a corrupção e a vigarice no centro da narrativa, sendo este um romance sobre as personagens A e B, o povo de um país e a forma como o poder se tece via Estado (manipulador e violento) e religiões (aproveitadoras e charlatãs). Assim, o autor, em simultâneo, expõe e critica a corrupção política e social. Enquanto vai tecendo os fios da construção literária, o autor explicita os abusos por parte de poderes que se querem perpetuar e totalizar, num romance que sabe a bater de volta perante uma classe dirigente que sempre viveu às margens dos interesses do povo dominado.

A autora não escreve segundo o novo acordo ortográfico