A segunda manhã de debate parlamentar sobre o Orçamento para 2023 teve um raro momento de comunhão entre Governo e Iniciativa Liberal e outro ainda de potencial acordo entre as duas mesmas frentes em matéria ambiental. Mas nas cinco horas de discussão foram mais os temas quentes do que os entendimentos entre bancadas parlamentares, com as pensões a trazerem acusações antigas de volta.

O PS recorreu aos cortes da troika para atirar à direita, mas nem mesmo o BE ficou convencido e atirou forte ao Governo por não aumentar as pensões ao nível da inflação. Na Saúde e no Ensino Superior também se registaram diferendos e, pelo meio, incentivos à reciclagem que podem ver a luz do dia nos supermercados. Esta quarta-feira segue-se nova ronda matinal no plenário da Assembleia da República.

Pensões. PS ficou sozinho ao lado da IL contra a atualização automática à inflação

Durante a manhã, o tema que mais aqueceu a discussão foi o das pensões, com a oposição a manter o ataque ao Governo por não aplicar a lei da atualização automática das pensões no próximo ano. É um debate com meses — começou em setembro quando o Governo apresentou o pacote de apoio às famílias com o apoio aos pensionistas dividido em dois momentos — que o PCP quis trazer a plenário para fazer prova da intransigência socialista.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A proposta do PCP para aplicar a fórmula de atualização automática à taxa de inflação já tinha sido rejeitada na tarde anterior, nas votações na comissão parlamentar de Orçamento e Finanças, mas os comunistas avocaram-na a plenário para deixar a bancada socialista sozinha (ficou ao lado da Iniciativa Liberal) no voto contra.

Em causa está a aplicação da lei a partir de janeiro, permitindo aumentos ao nível da inflação real, em vez do que o Governo pretende: já pagou meio aumento em outubro e a outra metade será distribuída ao longo do próximo ano. O Governo diz que, tudo junto, o aumento será igual à inflação, mas a oposição argumenta que o valor das pensões do próximo ano só aumenta metade do que deveria.

Quando trocaram argumentos, no debate, os comunistas tiveram apoios à esquerda e à direita, desde o Chega ao Bloco de Esquerda (passando por PAN e Livre), com Pedro Filipe Soares a acusar o Governo de “rasgar a lei para não pagar o que é devido aos reformados e pensionistas”.

No Governo, coube ao secretário de Estado da Segurança Social, Gabriel Bastos, atirar para o anterior Governo da direita, dizendo que “não foi nenhum Governo suportado pelo PS que procedeu ao corte das pensões em pagamento, que rasgou o contrato social para obter ganhos de curto prazo, que obliterou a solidariedade intergeracional”. Mas nem o BE convenceu, com o líder parlamentar Pedro Filipe Soares a lembrá-lo que o PS só aplicou a lei da atualização automática nos últimos anos “por imposição” dos partidos da esquerda que viabilizaram orçamentos entre 2016 e 2020.

No final, na votação da proposta de alteração do PCP, os socialistas votaram contra, tal como a IL, o PSD absteve-se e todos os outros partidos votaram a favor.

Raro alinhamento IL/Governo

Há um ano a Iniciativa Liberal conseguiu aprovar uma proposta que fez com que os estudantes que entravam no Ensino Superior tivesse acesso mais cedo às bolsas.  Foi uma “mudança radical”, assumiu o próprio secretário de Estado do Ensino Superior no debate, apontando as 40 mil bolsas pagas ao fim de um mês, em vez das “cinco ou seis mil” de outros anos. “Não foi um compromisso retórico”. Na Iniciativa Liberal, a deputada Carla Castro não se conteve a aplaudiu, afinal a medida era da IL, embora a aplicação seja do Governo socialista.

Um raro encontro de vontades que a IL aproveitou para pedir a antecipação dos resultados dos concursos de acesso ao Ensino Superior. Mas aí o Governo parece menos aberto, com Pedro Nuno Teixeira a admitir que é “uma preocupação”, mas que há uma razão “transparente” para a demora: há contingentes especiais, de estudantes imigrantes ou com deficiências, por exemplo, e esses processos têm de ser bem analisados primeiro.

Nem tudo foram flores nesta área. Minutos antes, o Bloco de Esquerda tinha atacado fortemente o PS sobre outra frente nesta mesma matéria ao falar, pela voz de Joana Mortágua, do peso das propinas nos orçamentos familiares e também dos problemas de alojamento para estudantes deslocados.

Depois de o Governo e da bancada socialista ter feito a defesa das medidas já tomadas sobre o alojamento, a deputada bloquista ironizou sobre os estudantes que os estudantes não terão casa “a não ser que o deputado Miguel Costa Matos [líder da JS que tinha falado deste tema] lhes empreste”. “As propostas do PS não vão resolver. É preciso que o Estado se meta à frente do mercado”, desafiou.

No lado de lá do hemiciclo, Alexandre Poço, do PSD, atirava ao PS os seus próprios números para dizer que só disponibilizou mais 73 camas para estudantes em quatro anos. Os sociais-democratas querem que exista estabilidade e que os estudantes possam negociar contratos aos melhores preços para quatro anos letivos.

Negociações à vista no Ambiente?

O ambiente foi um dos poucos temas em que, apesar das discussões acesas entre bancadas, houve uma amostra de negociação a dar frutos, com o PS a garantir que aprovará uma proposta da Iniciativa Liberal. Ou seja, alinhará na criação de uma rede de depósitos de embalagens para reciclar, em supermercados e cafés, em que o cliente receba um pequeno reembolso (se gastou um euro num refrigerante de lata poderá receber dez cêntimos, como incentivo, se o reciclar, por exemplo). O deputado do PS Hugo Pires ainda adiantou que nesta área os socialistas estarão dispostos a deixar mais propostas, mas sem detalhar quais.

A harmonia ficou por aí. As acusações começaram fortes, com o Chega a falar do “drama” que é “morrer-se de frio em Portugal”, por causa da pobreza energética, e a acusar o Governo de pôr em prática programas fracos e pouco abrangentes para resolver o assunto; e fortes terminaram, com o Livre a acusar o partido de chorar “lágrimas de crocodilo” e falar de ambiente “nas pausas de falar sobre castração química”, lembrando que já apresentou precisamente propostas para que estes programas sejam mais eficazes, envolvendo as juntas de freguesia, por exemplo.

O PS ironizou com o recém-encontrado “espírito ambientalista” de PSD e Chega; o secretário de Estado João Galamba troçou do PSD por pedir ao mesmo tempo mais desperdício de água e mais regadio; e o Chega acabou a pedir que pelo menos “uma” proposta sua fosse aprovada. No final, Inês Sousa Real, deputada do partido que entrou para o Parlamento com a premissa de ser ambientalista, o PAN, acabou a lançar acusações gerais: “São todos muito ambientalistas até começarem a defender a pesca intensiva e a pecuária intensiva, e se isso não é negacionismo ambiental não sei o que será”, resumiu.

Na Saúde não há acordo possível

Se as discordâncias no rumo e nas verbas da Saúde foi um dos motivos para o fim dos acordos à esquerda, neste debate o Bloco de Esquerda fez questão de deixar os motivos para essa rutura claros, lançando graves acusações ao Executivo – de “destruir a credibilidade da democracia” a seguir políticas de privatização que “tiram anos de vida”.

Depois de a direita ter falado das suas propostas para envolver os privados na resposta a dar a pessoas sem médicos de família ou em longas filas de espera para cirurgias e consultas, o secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre, veio dizer que quanto à escassez de médicos de família a ideia será, de forma “pontual, transitória e localizada”, em articulação com os profissionais, encontrar soluções para “locais concretos” onde ainda não há “cobertura familiar”. “Não nos vamos desviar do nosso caminho, apesar de quererem apresentar algumas ideias que não são aquelas que nós defendemos”, avisava.

Quanto a esse aviso, nada feito: para a esquerda, foi a confirmação de que o Governo segue o caminho da direita – PSD e IL até explicaram “melhor” a visão do Executivo sobre Saúde, atirou Catarina Martins, garantindo que o problema do SNS são as promessas iguais do PS “ano após ano”, prejudicando “uma das maiores conquistas da democracia”.

E lembrou os tempos de desentendimento na geringonça, quando PCP e BE queriam valorizar carreiras e salários de médicos e enfermeiros e o PS “vetou, proibiu, deixou os médicos de família desistirem – e agora diz que a solução é dar esse dinheiro aos privados”. “É um dos maiores erros do PS”, rematou, rejeitando as explicações do Executivo e os recordatórios sobre as muitas (48) reuniões com sindicatos de enfermeiros para permitir que 20 mil subissem de escalão.

“Registo que não se desviarão do caminho e que querem mesmo privatizar os cuidados primários de Saúde. Ter um discurso de esquerda sobre SNS e uma política de direita que o destrói destrói também a credibilidade da democracia, este caminho é perigosíssimo”, atiraria a coordenadora do BE, ouvindo o PCP concordar e lembrar a insatisfação entre os profissionais de Saúde. Com exigências à direita e críticas à esquerda, o Governo lá foi garantindo que não se desviará de um caminho: o seu, sem aliados nestas matérias.