Quando o CD nasceu, com os seus 74 minutos de música, por oposição aos 46 do vinil, a primeira preocupação da indústria não foi poder oferecer mais canções num só disco (o que eventualmente até podia diminuir o preço dos antigos discos duplos em vinil), ou a qualidade do som dos novos discos – foi reeditar antigos sucessos num novo formato; o conteúdo era o mesmo, a embalagem era diferente.
Anos volvidos – e sem vos aborrecer enumerando a quantidade absurda de vezes em que o fundo dos catálogos das editoras/produtoras foi reeditado quando surgiam tecnologias como o DVD ou o Blu-Ray – o processo repetiu-se com o streaming: a grande luta inicial da Netflix foi ter acesso aos grandes catálogos, poder exibir os Seinfelds deste mundo. A sua novidade era ser a primeira TV portátil, sem anúncios, sem ter de esperar uma semana para ver o novo episódio – um videoclube non stop 24 horas por dia no PC ou smartphone; sendo uma rutura, podia ter aproveitado para criar obras que fossem revolucionárias; mas nada vende tão bem quanto o que já vende bem, pelo que a qualidade e a inovação artística não estavam na lista de prioridades.
Enquanto não obtinha os grandes catálogos e não tinha uma biblioteca suficientemente grande e apelativa, a Netflix viu-se obrigada a – como se diz hoje em dia – criar conteúdo. Literalmente obrigada: era necessário encher chouriços, passar a ideia de que havia muito por onde escolher. Aquelas galerias onde aparecem as imagens das séries e dos filmes que estão à distância de um clique? Bom, era necessário encher aquelas galerias com algo que aparentasse ser bom.
A tática que escolheram foi à prova de bala: disparar em todas as direções possíveis e imaginárias e usar os dados para perceber o que funcionava, entender o que os assinantes gostavam, o que levou à descoberta e exploração até à náusea de tudo o que tivesse sucesso: “Narcos” pegou? Então siga para uma sucessão de séries pavorosas de true crime; os specials de Louis CK disponíveis só no website do cómico foram um êxito? Então vamos pagar milhões sem fim a todo o meco que alguma vez fez rir a avó e encher a plataforma de specials de comédia, uma catadupa de specials, tantos mas tantos que acabaram por retirar o que havia de especial num special.
[o trailer de “Shaq”:]
A Netflix pode ter chegado primeiro ao streaming, mas mal as corporações tradicionais perceberam a vantagem que era ter acesso aos dados dos espectadores (e criar produtos à medida dos seus gostos), toda a empresa que alguma vez produziu um filme ou uma série quis ter a sua plataforma de streaming e, como se diz hoje em dia, “criar conteúdo”, o que em linguagem não adocicada significa criar objetos que são exatamente iguais aos outros objetos que já funcionaram.
O mais recente filão das plataformas de streaming parece ser o desporto – só no último par de anos apareceu a série “All or Nothing”, o documentário sobre a Redeem Team (equipa da NBA, liderada por Kobe, que voltou a conquistar o ouro olímpico para os EUA), documentários sobre a corrupção na FIFA, sobre “a verdade” acerca do que aconteceu com Ronaldo Fenómeno na final dos Mundiais e, claro, “The Last Dance”, a série sobre os feitos de Michael Jordan – não tinha propriamente nada de novo, mas era muito competente a estabelecer uma narrativa simples mas apelativa: aquele homem tinha, ao contrário do que foi a sua imagem pública enquanto jogador, muitas falhas (ao ponto de ser quase um bully), mas era exatamente esse feitio que o fazia treinar horas sem fim, ser um competidor sem igual e tornar-se o melhor jogador de sempre.
“The Last Dance” reciclava Jordan enquanto lenda para uma geração que nunca aceitaria um herói clean (como a sua imagem nos 90s). E “Shaq”, o documentário sobre Shaquille O’Neil que se estreia esta quinta-feira, 24 de novembro, na HBO — porque a máquina de reciclar conteúdos não pode parar — segue a mesma matriz: reposiciona o antigo poste como o jogador mais dominador da sua época, mostrando simultaneamente o seu lado brincalhão e um outro lado, umas vezes agressivo, outras calaceiro.
Ao contrário de “The Last Dance”, que ouvia toda a gente, incluindo os arqui-inimigos de Jordan (que mesmo assim tinha sempre a última palavra), “Shaq” consiste praticamente de Shaq a contar a sua história; Kobe já morreu, por isso não pode aparecer; Phil Jackson, o treinador que levou a dupla a três triplos, surge, mas não acrescenta nada por aí além; aparecem os irmãos, os pais, o guarda-costas, alguns colegas de profissão que são amigos – mas nenhum dos inimigos, ninguém com quem Shaq tenha andado ao soco.
Não estamos a ver “Shaq” porque um guionista brilhante teve uma ideia sobre como re-contar a história do grandalhão – estamos a ver “Shaq” porque Shaq é um homem de negócios brilhante, que sabe manipular os media, omnipresente até hoje ao ponto de ser o mais querido dos comentadores de basquete, muito à conta da sua capacidade de gozar consigo mesmo, das suas palhaçadas. Pelo que, para Shaq, esta é uma oportunidade de reforçar a marca Shaq, como aliás ele próprio diz a dada altura, o que inevitavelmente levará a que ele faça mais e mais anúncios, atividade na qual podemos dizer que é dominador (mais do que foi no jogo).
O mais interessante de “Shaq”, o documentário, é o primeiro episódio, em que se traçam as origens humildes do gigante e a sua descoberta de que o seu pai não era mesmo o seu pai; a mãe de Shaq leva-o um dia a conhecer o pai biológico, mas Shaq já se havia afeiçoado ao padrasto e continuou a tratá-lo por pai. Este, por sua vez, era um militar com alguma propensão para a violência: quando Shaq quis aprender basquete, a primeira aula (isto é eventualmente um spoiler, pelo que quem não quiser saber nada antecipadamente deve mudar de parágrafo) consistiu no pai a atirar a bola à cara de Shaq para que este aprendesse que neste mundo era preciso sofrer.
Em pequeno, Shaq era tímido e sentia-se um outsider, muito à conta do seu tamanho, que o distinguia; ocasionalmente recorreu à violência (ou sucumbiu aos seus instintos violentos) para se vingar do gozo de que era alvo; esses dias acabaram quando (e isto é MESMO UM SPOILER, já sabem o modus operandi, se não quiserem ler saltem para o próximo parágrafo) deu uma tareia de tal monta num colega que este teve um ataque, sendo salvo por um terceiro colega que, com um lápis, o impediu de engolir a língua. Se o rapaz tivesse morrido, Shaq teria sido preso e adeus basquete.
Daqui para a frente é mais ou menos a história de toda a gente que conquistou alguma coisa pelos seus próprios meios: as rejeições em garoto até crescer e se tornar dominante; uma primeira época frustrante na universidade antes de se tornar — outra vez — dominante; os anos em Orlando, em que não conseguiu conquistar o título, as épocas falhadas nos Lakers antes de ele e Kobe se tornarem imparáveis.
A saída dos Lakers não é alvo de inspeção profunda – Shaq admite que não costumava treinar nas férias, e que chegava gordo, mas nunca se explora ao limite a zanga que se estabeleceu entre Kobe (um perfeccionista que dedicava toda a vida ao basquete) e Shaq (um tipo que adorava ganhar dinheiro, fazer anúncios, gravar discos de rap, comer e andar de festa em festa). A conquista do quarto título, já nuns Heat treinados por Pat Riley, que soube como extrair o melhor de Dwaine Wade e o pouco que restava a Shaq, tem uma dose de humildade: Shaq admite que aquela já era a equipa de Wade.
Há mais momentos assim, como quando (SPOILER) admite que os seus casamentos falharam por sua causa, ou quando os filhos dizem que cresceram quase sem o pai, ou Shaq, após notar que ele próprio havia errado com mulheres e filhos, decide fazes as pazes com o pai biológico, a quem nunca dera uma chance.
Quem conhece bem a NBA já sabe destas histórias todas; quem não conhece ficará por certo com a impressão que por trás daquela carapaça de palhaço bruto está um homem com dilemas de ego que se esforça para não repetir os erros do passado e que parece ser um tipo razoavelmente porreiro. Isso pode não ser lendário, mas se esse esforço for verdadeiro, é certamente mais importante que qualquer anel.