Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar
– Olha, agora estão a perguntar-me se estou embriagado… Não, não estou! Sou mesmo assim!
Luis Enrique não é um treinador qualquer. Ou melhor, é um treinador diferente. E depois tem ainda outro problema: ser um daqueles diferentes que não caem tanto no goto a comparar com outros. Foi por isso que, depois de dois empates com Suécia e Polónia no arranque do último Europeu, as facas já começavam a ser afiadas para mais umas daquelas noites longas a que a Real Federação Espanhola de Futebol bem tenta mas não consegue fugir. Afinal, aquela equipa e aquela campanha só chegariam a cair no desempate por grandes penalidades das meias-finais num jogo onde a Roja até foi globalmente melhor do que a Itália. A hipótese de saída ficou afastada, os afiadores continuaram à espera. O técnico sabia disso mas, mais uma vez, decidiu ser diferente numa tentativa de aproximar mais os adeptos à seleção. Assim nasceu o Twitchball.
A frase supracitada foi apenas uma das muitas expressadas pelo treinador espanhol na primeira sessão de Twitch com adeptos, que contou com cerca de 150.000 pessoas. Antes, até o anúncio se tornou bombástico. “Streamers do mundo, cuidado que vou por aí abaixo e não tenho travões! Gravo este vídeo para anunciar que me tornei streamer. Bem, não me tornei streamer porque isto é um vídeo, ainda não me estreei, mas a minha intenção é fazer streams durante o tempo que vamos estar no Qatar, em Doha. É uma ideia que nasceu de forma maluca mas interessante. Estabelecemos uma comunicação mais direta, sem filtros, mais espontânea e interessante para todos”, anunciou o técnico na apresentação. E assim foi.
“Estão muitas pessoas, vocês ou não têm nada para fazer, o que acho ótimo, ou estão mesmo interessados em seguir a seleção”, disse entre os dois monitores com que faz as gravações. E houve um pouco de tudo, desde a confirmação de quem era o jogador preferido (e namorado) da filha – “Se disse que é outro, ela bate-me”, disse entre sorrisos – até a uma pequena gaffe geográfica sobre uma Costa Rica que era uma seleção muito forte… sul-americana. Objetivo prioritário? Aproveitar o balanço da parte final da campanha feita no último Europeu e na Liga das Nações para aumentar a proximidade dos adeptos com a equipa e espantar os fantasmas de um último Mundial que teve Julen Lopetegui demitido na antecâmara do arranque frente a Portugal e Fernando Hierro, que ia apenas como diretor à Rússia, a assumir o comando da equipa. E, com isso, poder continuar a pensar diferente com um onze inicial que apanhou de surpresa os meios espanhóis.
Cada um à sua maneira, a Espanha é uma seleção vanguardista mas a Costa Rica também não lhe fica atrás, ou não tivessem os ticos algumas particularidades como o software colocado em baixo dos colchões de todos os jogadores para medir, controlar e estudar o sono e poder melhorar o descanso ou a introdução na própria equipa técnica de um psicólogo que trabalha a parte da neurociência com exercícios e meditação que têm como principal função estimular um músculo chamado cérebro. Era essa massa cinzenta que iria estar à prova no Estádio Al Thumama já depois da surpreendente vitória do Japão frente à Alemanha. Foi essa massa cinzenta que entrou em completo curto circuito com um arranque a todo o gás de uma Espanha com Rodri a central (Torres, Eric Garcia e Guillamón ficaram no banco) e sem número 9 de raiz.
Com apenas cinco minutos de jogo, na sequência de um dos muitos passes sempre a pôr a bola a rolar de Gavi, Dani Olmo, a grande surpresa do onze, rematou ao lado. Pouco depois, Asensio, neste caso com outro dos muitos e deliciosos passes de Pedro, atirou também ao lado mas mais perto do alvo (9′). Dois avisos que a Costa Rica não quis ouvir entre a sua meditação de quem quer continuar zen com a casa a arder e à terceira foi mesmo de vez. Uma, duas, três vezes: Dani Olmo inaugurou o marcador com uma soberba receção orientada após assistência de Gavi que sofreu ainda um desvio num defesa (11′), Marco Asensio aproveitou o seu posicionamento mais pelo meio no ataque para rematar na passada depois de um passe de Jordi Alba para o 2-0 (21′), Ferran Torres aumentou a vantagem de grande penalidade (31′). Até pelos minutos dos golos parecia um jogo “viciado” e foi esse o grande mérito da Espanha, apostando sempre na mobilidade, no ataque em posse e no campo largo para potenciar a melhor qualidade individual.
A roda feita pelos jogadores costa-riquenhos antes do início da segunda parte até poderia fazer presumir que haveria um qualquer tipo de reação mas foi mais do mesmo, também com culpas próprias pelas facilidades com que Ferran Torres ganhou espaço na área para fazer o 4-0 num jogo onde até a estrela Keylor Navas não estava propriamente muito confiante na baliza (54′). O encontro estava mais do que resolvido e Luis Enrique aproveitou para rodar alguns jogadores, percebendo-se a cumplicidade entre o técnico e todos os elementos que saíram de campo e também o ambiente desanuviado e de entreajuda que se vive na Roja, com Azpilicueta a receber a braçadeira de Busquets mas a ir dar a mesma a Morata (e foi depois parar a Koke). E foi o avançado que fez a assistência para o 5-0, com um grande remate de primeira de Gavi que voltou a deixar o Rei Felipe VI satisfeito da vida perante a exibição mais convincente entre os candidatos (74′). Já no final da partida que a Costa Rica tanto ansiava, Carlos Soler aproveitou uma defesa incompleta de Navas para a frente e fez o 6-0 (90′), ficando Morata com o sétimo e último golo de pé esquerdo (90+2′).
A(s) pérola(s)
- É difícil escolher um jogador da Espanha entre tantos destaques. O politicamente correto diria para ir pela equipa e forma de jogar (que merece tudo), o óbvio para ir pelos dois golos de Ferran Torres, o meritório para a forma como Jordi Alba e Busquets parecem outros quando chegam à seleção. Todavia, e sempre que a Roja consegue elevar os patamares das suas exibições, há sempre dois baixinhos ali pelo meio a pôr a moeda para todo o carrossel andar. Pedri foi o jogador mais entusiasticamente aplaudido na apresentação entre muitos adeptos de outros contingentes (sobretudo mexicanos, que até a música de Lozano cantaram…), Gavi aquele que esta noite mais se destacou. E não, não vale a pena entrar em comparações até porque são estilos diferentes – um dia houve Xavi e Iniesta, agora há Gavi e Pedri.
O joker
- Só tem 24 anos, ganhou a primeira internacionalização em 2019 mas é um fenómeno relativamente recente a nível de seleção por ser daqueles raros exemplos espanhóis que têm de sair dos principais conjuntos do país para vingar (neste caso com o Dínamo Zagreb a funcionar como rampa para os altos voos no RB Leipzig). Este é o BI de Dani Olmo, que parece pouco mas é tudo menos isso quando se vê aquilo que joga: capaz de atuar em qualquer posição de um ataque mais móvel ou mais recuado num dos vértices do carrossel do meio-campo, foi a principal surpresa de Luis Enrique para a partida, teve a primeira oportunidade, marcou o primeiro golo e foi sempre uma dor de cabeça costa-riquenha.
A sentença
- Depois da vitória e sobretudo da exibição da Espanha, a Alemanha enfrenta a partir de agora sérios problemas a nível de qualificação para os oitavos e está obrigada a bater a Roja na próxima jornada para depender depois apenas de si na última ronda contra a Costa Rica; caso contrário, e se empatar, ainda pode entrar na lógica da máquina calculadora mas por mais contas que faça sabe que as probabilidades de Espanha pontuar diante dos nipónicos em caso de necessidade é bastante elevada. Em relação aos ticos, principalmente pelo que não jogaram, têm mais dois jogos até voltarem a casa…
A mentira
- Ainda falta muito até ao Mundial de 2026 mas há coisas que já podem começar a ser faladas e que tendem a ser mais uma “talhada” naquilo que é uma fase final: qualidade, equilíbrio, os melhores jogadores, as melhores equipas, os melhores espectáculos. É uma mera questão de fazer as contas: se na próxima edição EUA, México e Canadá terão entrada direta por serem os países organizadores, se ao todo irão marcar presença seis equipas da CONCACAF (fora duas que ainda vão entrar no playoff intercontinental), o próximo Campeonato do Mundo terá quase de certeza uma Costa Rica além de mais dois conjuntos entre Panamá, Jamaica, El Salvador ou Honduras. Pela amostra, não é uma boa ideia. Assim como outra, que se viu no final desta partida: já com 6-0 e com a Costa Rica quase a pedir para que terminasse o suplício com bancadas quase vazias, oito minutos de descontos é um exagero…