Num futuro indistinto e bisonho em que a humanidade está a passar por novas transformações físicas através de intervenções cirúrgicas — e as mais extremas destas são consideradas como sendo arte — um “performer” de vanguarda, Saul Tenser (Viggo Mortensen), consegue fazer crescer novos órgãos no seu corpo e faz dessas mutações os seus espectáculos. Entretanto, os membros de um pequeno grupo marginal e radical que a polícia está a vigiar de perto, são capazes de comer e digerir plástico, graças a cirurgias feitas no aparelho digestivo. Se soa a um filme de David Cronenberg, é mesmo um filme de David Cronenberg. Chama-se “Crimes do Futuro” e estreia-se esta semana, após ter sido exibido no LEFFEST — Lisbon & Sintra Film Festival.

Falámos com o cineasta canadiano sobre esta nova realização, que assinala o seu regresso à ficção científica e ao “body horror”, já que desde “eXistenZ” (1999) que ele não fazia uma longa-metragem dentro deste género.

“Crimes do Futuro” tem várias referências a filmes anteriores seus, como “Irmãos Inseparáveis” (quando um dos gémeos fala em concursos de beleza de entranhas), “Videodrome”, “Crash” ou “eXistenZ”, e também por isso parece apresentar-se como o corolário da sua filmografia. Será que “Crimes do Futuro” poderia existir sem antes ter feito todos estes filmes?
Escrevi “Crimes do Futuro” em 1998. Se as coisas tivessem corrido bem, ele teria sido rodado nesse ano, ou em 1999. Mas não consegui financiamento, por razões várias, e fui fazer “Uma História de Violência” e outros projetos. Se tivesse feito este filme há 20 anos, não sei como teria sido, mas o argumento era exatamente o mesmo. Haveria muita semelhanças, mas não teria trabalhado com o Viggo Mortensen, por exemplo. Não podemos dizer ao certo o que o filme teria sido. Sei que algumas pessoas disseram e escreveram que “Crimes do Futuro” era o “greatest hits do Cronenberg”, ou coisa assim. Mas eu não estava a tentar servir-me de outros filmes, a minha sensibilidade é a mesma de sempre e o que está nele é a atmosfera que reinava na altura em que o escrevi. Claro que há coisas que o ligam a “eXistenZ”, por exemplo, mas acho que as pessoas não precisam de ter visto outros filmes meus para apreciarem este.

Os seus filmes de terror e de ficção científica são, insistentemente, sobre a interação entre o corpo humano e a tecnologia, e as metamorfoses e mutações daí resultantes. Em “Crimes do Futuro”, quase não há mediação da tecnologia: Tenser consegue gerar os seus próprios órgãos e os membros do grupo anarquista têm um sistema digestivo apropriado à ingestão de plástico. É um panorama diferente?
Sim, embora eles tenham recorrido à cirurgia, e o Tenser também. O que está em causa aqui é que nós agora estamos de posse do controlo da nossa própria evolução e um animal da floresta não está. Fazemos casas, comida, iluminação, computadores e estamos constantemente a pôr no nosso corpo coisas que inventámos: remédios, químicos de todo o tipo, que não existiam antes, e que estão a alterar os nossos corpos, e os corpos dos nossos filhos. Portanto, mesmo não estando conscientes disso, estamos a controlar a nossa própria evolução, os nossos corpos estão sempre sob uma pressão tecnológica de algum tipo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ou seja, em “Crimes do Futuro”, as alterações mais radicais nos corpos das personagens não são ainda totalmente orgânicas.
Exato, há ainda e sempre essa pressão tecnológica.

[Veja o “trailer” de “Crimes do Futuro”:]

O filme passa-se num mundo futuro que está escassamente caracterizado, você dá-nos muito pouca informação sobre que tipo de futuro é aquele. Mas pelo pouco que nos mostra, parece uma sociedade que se está a descontrolar, a perder de vez os seus referentes.
Sim, e há sinais disso, de decadência, de desilusão. Deixei tudo sugerido. A minha aproximação hoje aos filmes é esta: se há algo que não me apetece discutir, não o discuto. E assim, não refiro qual é a situação política deste futuro, se há algum tipo de controlo estatal, se há governo. Existe, pelo menos, uma polícia, e alguma tentativa de manter a ordem.

E há burocratas…
Sim, há sempre, há burocratas em toda a parte, e em todas as civilizações humanas (risos). Também não adiantei mais dados sobre que tipo de futuro é este, porque não não me interessava pormenorizar. E, aliás, o objetivo do filme não é esse. O que há, é uma qualidade onírica. Quando sonhamos, o sonho tem um tom e uma sensação, mas não percebemos bem onde é que se está a passar. Sentimo-lo, mas não é uma coisa racional. Foi isso que quis deixar sugerido.

Naquele mundo, e naquelas circunstâncias, a personagem de Tenser tinha necessariamente que ser um artista de “performance”? Não poderia ter sido outra coisa? Um médico, por exemplo?
Não, porque me pareceu muito natural que ele fosse não apenas um artista de “performance”, mas também que fizesse parte de uma subsociedade de artistas de vanguarda. Seria um filme diferente se ele tivesse tido outra profissão.

No filme, as autópsias e as cirurgias extremas são reivindicadas por esse subgrupo como sendo formas de arte. É uma coisa sinistra, terrível, e “Crimes do Futuro” não faz juízos sobre isso.
É sim, e eu abstenho-me de qualquer tipo de julgamento, mas não estou necessariamente a dizer que essas práticas são uma coisa boa, como é óbvio. Mas são uma coisa inevitável, no contexto daquela sociedade que eu descrevo, e considerando o caminho que a evolução humana está a tomar. Não estou a apoiar ou endossar nada, nem a dizer que é uma solução para algum tipo de problema. Quero lançar luz sobre as perguntas, não quero dar respostas.

[Veja uma cena do filme:]

O filme tem o mesmo título de uma das suas primeiras realizações, dos anos 70. Há algum ponto de contacto entre este “Crimes do Futuro” e o de há 50 anos?
Há, e houve pessoas que me chamaram a atenção para isso. Há uma cena no filme antigo, de que me tinha esquecido completamente, em que se vêem órgãos metidos em frascos que tinham sido criados de forma espontânea. Eu não vejo o primeiro “Crimes do Futuro” há décadas e não me lembrava nada disso. Tenho uma vaga ideia sobre órgãos que à primeira vista parecem não ter uma função específica, mas talvez a possam ter. Isso está, aliás, em “Os Parasitas da Morte”, onde o truque destes é substituírem-se aos órgãos dos humanos. O que na realidade sucede com alguns parasitas que existem mesmo, é um dos temas dos meus filmes. Talvez haja mais ligações entre este “Crimes do Futuro” e o primeiro do que eu me aperceba.

Já tinha trabalhado com o Viggo Mortensen em quatro filmes. Ele foi a sua primeira escolha para o papel do Tenser?
No princípio, o Viggo não queria fazer esse papel, ele preferia interpretar o polícia. Percebi porque é que ele não queria ser o Tenser, mas acabei por o convencer que era o ator certo. Já a Léa Seydoux não foi a minha primeira escolha para a Caprice, a parceira do Tenser, por causa da diferença de idade entre ambos, embora a relação que há entre eles não seja a relação romântica normal, convencional. Originalmente, a Léa ia fazer o papel que foi para a Kristen Stewart, mas a certa altura ela soube que eu estava com dificuldade em achar a atriz certa para a Caprice, disse-me que achava que o podia e devia desempenhar, e assim foi.

Teve reações negativas por causa de algumas das sequências mais extremas do filme, como o assassínio da criança que come plástico pela mãe, ou a posterior autópsia?
Surpreendentemente, muito poucas. Houve um sujeito que ficou perturbado porque na autópsia se veem os genitais da criança, e pediu que eu fosse preso por molestação de menor. Ele não percebeu que não era, como é óbvio, o corpo de uma criança, mas sim um modelo feito de silicone pela equipa de efeitos especiais. Tirando isso, não houve mais reações.

É um grande apreciador de carros, sobretudo de Ferraris, e de corridas de automóveis. Será que vai alguma vez conseguir filmar o seu velho projeto “Red Cars”, sobre a Ferrari e os dois pilotos desta escuderia nos anos 60, Phil Hill e Wolfgang von Trips?
Não, acho que já não será possível. Li algures que foram anunciados recentemente um par de filmes sobre a Ferrari e um deles envolve o Brad Pitt, que eu tinha contactado para entrar no “Red Cars” quando ele fez o “Seven — Sete Pecados Mortais”. Queria que ele interpretasse um dos papéis principais, o do Phil Hill. E será irónico, se tantos anos após esse contacto frustrado, ele acabar por participar num filme sobre a Ferrari.