Toda aquela conversa fiada sobre beleza exterior e beleza interior vai ter de ser revista depois de “Crimes do Futuro”, de David Cronenberg, o primeiro filme a ser rodado e também escrito por ele desde “eXistenZ” (1999), e que marca igualmente o seu regresso à ficção científica e ao “body horror”. Aquilo que um dos irmãos gémeos ginecologistas de “Irmãos Inseparáveis” (1988), interpretados por Jeremy Irons, adiantava a certa altura deste filme, sobre a realização de um “concurso de beleza dos órgãos internos” das pessoas, é finalmente concretizado por Cronenberg em “Crimes do Futuro”.

Ambientado num futuro desolado e sombrio, em parte indeterminada (a rodagem decorreu na Grécia), a fita tem como protagonista Saul Tenser (Viggo Mortensen), um artista de “performance” que, após ter sido submetido a uma cirurgia, consegue gerar espontaneamente novos órgãos no corpo, depois removidos pela sua parceira, Caprice (Léa Seydoux), uma ex-cirurgiã. E fazem disto um espectáculo. Neste futuro, esta “evolução acelerada”, como lhe chamam, é considerada arte de vanguarda, a cirurgia é o novo sexo, e a dor passou a ser uma forma de prazer e uma emoção estética. Após ter glosado nos filmes anteriores o tema da “nova carne”, uma mutação fruto da interacção entre o corpo humano e a tecnologia, David Cronenberg propõe agora as novas vísceras.

[Veja o “trailer” de “Crimes do Futuro”:]

E não se fica por aqui. Em “Crimes do Futuro” há também um grupo pró-mutações radical que alterou o sistema digestivo humano, para que as pessoas possam passar a comer e digerir plástico. Todos são seguidos pela polícia, que usa Tenser como informador, e monitorizados com pouco zelo por um casal de burocratas do Estado que aparentemente governa aquele mundo (interpretados por Don McKellar e Kristen Stewart), e cuja função é tatuar e classificar os novos órgãos, para que possam ser prevenidos os eventuais novos crimes decorrentes desta nova etapa das metamorfoses humanas (e daí o título do filme). E tudo isto Cronenberg mostra sem fazer juízos de valor. O espectador que decida da monstruosidade ou do fascínio de um tal porvir.

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[Veja uma entrevista com Viggo Mortensen e Léa Seydoux:]

Cronenbergiano até à medula, “Crimes do Futuro” é como que o equivalente cinematográfico daqueles “Best Of” que as bandas e os músicos consagrados lançam a certa altura das carreiras, quando acham que já não têm que provar nada a ninguém. Lá está o corpo como permanente matéria-prima da especulação científica e socio-cultural, e da construção do terror e sua sexualização; a conjunção entre a carne e a tecnologia (bio-mecânica, neste caso); os temas do declínio da sociedade, do progresso técnico-científico com viés perverso e das tentativas de controlo do poder; as máquinas bizarras (uma mesa de autópsias automática, uma cama com tentáculos penetrantes que ajudam ao sono); e muitas referências a filmes anteriores, como “Videodrome”, “Crash” ou os citados “Irmãos Inseparáveis” e “eXistenZ”.

[Veja uma cena do filme:]

O que falta a “Crimes do Futuro”, além de uma história mais bem nutrida, é intensidade, conflito e choque, o gozo na encenação dos efeitos “splatter”, as electrocussões de terror e o arrebatamento narrativo que também fizeram a reputação de David Cronenberg. É um filme inerte e tépido, muito falado e pouco activo, e com interpretações quase todas pouco convictas (Viggo Mortensen, que começou por recusar o papel de Saul Tenser, está claramente retraído). E as sequências do assassínio e da autópsia da criança comedora de plástico, filha do líder da seita radical, se se entendem no contexto do enredo, não deixam de ser de mau gosto – mesmo para um realizador como Cronenberg.

Leia aqui uma entrevista com David Cronenberg