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"Ôss": assim dançam os corpos marcados pela diferença

Este artigo tem mais de 1 ano

Marlene Monteiro Freitas e a companhia Dançando com a Diferença apresentam um espetáculo expressionista, sobre o lugar ocupado pelo diferentes tipos de corpos em palco. Na Culturgest, em Lisboa.

"Ôss" é um espetáculo que se vai revelando como reflexão sobre as diferentes possibilidades performáticas dos corpos
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"Ôss" é um espetáculo que se vai revelando como reflexão sobre as diferentes possibilidades performáticas dos corpos

Laurent Philippe/divergence-images.com

"Ôss" é um espetáculo que se vai revelando como reflexão sobre as diferentes possibilidades performáticas dos corpos

Laurent Philippe/divergence-images.com

Por detrás da cortina guarda-se um segredo, um dispositivo repleto de fantasias que se vão a dar a conhecer através do movimento e do seu desempenho perante o olhar de quem se atreve a espreitar. Tal como um verdadeiro cabinet de curiosités, somos primeiro introduzidas ao mote desta celebração pela música. À frente da cortina, um bouxeur e DJ eleva o tom de entusiasmo com uma batida pujante, de ritmos africanos, antes de tomar a posição estática de bailarino que encara as poses mais tradicionais da dança clássica. É este o preâmbulo de “Ôss”, o espetáculo que junta a coreógrafa Marlene Monteiro Freitas à companhia Dançando com a Diferença, que sobe ao palco do Auditório Emílio Rui Vilar, na Culturgest, em Lisboa, no âmbito do Festival Alkantara, este sábado e este domingo, dias 26 e 27 de novembro.

A peça, que teve estreia no Festival de Outono, em Paris, vive entre o conceito e a estética definida pela coreógrafa cabo-verdiana, com a morfologia do elenco da companhia Dançando com a Diferença, criada em 2001, e cujo trabalho, no campo da dança inclusiva se destaca pela possibilidade de juntar em palco pessoas com e sem deficiências. A grande força de trabalho da criadora, galardoada com o Leão de Prata de carreira na Bienal de Veneza de 2018, transporta-nos para uma obra que oscila entre o grotesco e o mágico. Ao subirem as cortinas, escuta-se um trecho de Salomé, a ópera em um ato de Richard Strauss, baseada na peça de mesmo nome de Oscar Wilde. Os bailarinos encaram personagens, num cenário repleto de platinados, estruturas de várias dimensões, onde as luzes e a música ampliam uma ideia expressionista, numa realidade subjetiva à natureza humana.

Nas entranhas destes corpos, explora-se a relação entre o que é sólido e macio e desconstrói-se a visão, tantas vezes limitada, daquilo que um conjunto de pessoas portadoras de deficiências do foro físico ou mental podem ser aos olhos da sociedade contemporânea

É, no fundo, a estrutura que dá seguimento ao nome “Ôss”, que significa osso em crioulo, expressão igualmente comum entre os praticantes de karaté, que se refere a ideias como pressionar, empurrar, suportar. Pelas diferentes orientações anatómicas do elenco, o espetáculo vai-se revelando como reflexão sobre as diferentes possibilidades performáticas dos corpos. Fala-se de fragilidade, mas também daquilo que é possível ser em palco, onde se vai mais longe do que no plano da realidade. Entre os diferentes quadros, há bailarinos que encaram a posição de marinheiros ao leme de um navio, uma toureira de capote vermelho, um monge Shaolin e uma jovem que dá à luz. Nas entranhas destes corpos, explora-se a relação entre o que é sólido e macio e desconstrói-se a visão, tantas vezes limitada, daquilo que um conjunto de pessoas portadoras de deficiências do foro físico ou mental podem ser aos olhos da sociedade contemporânea. Em “Ôss” podem ser o que pretendem e desejarem: personagens, pessoas reais ou simplesmente bailarinos que dão corpo ao movimento e à expressão.

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No universo coreográfico de Marlene Monteiro Freitas qualquer corpo carrega características inovadoras para o campo de criação. Não importa se é alto, baixo, velho ou jovem, deficiente ou limitado, europeu, africano ou asiático. No dispositivo montado em palco, não há entrada nem saída. Os bailarinos — Bárbara Matos, Bernardo Graça, Rui João Costa, Sara Rebolo, José Figueira, Joana Caetano e Telmo Ferreira — estão todos em palco, congelados no momento. São autómatos prontos a exercer o seu papel numa narrativa que faz lembrar As Bacantes, a tragédia grega de Eurípedes. Daí que “Ôss” adquira o epíteto de uma peça dionisíaca, um tanto ou quanto onírica, mas que no fim se traduz numa conceção multiforme, onde a vida encaixa e se desfazem as barreiras humanas, a partir de certa altura já inexistentes.

Um olhar partilhado

Para a criação do novo espetáculo, partiu-se do conceito para o movimento, numa construção partilhada a par e passo entre Marlene Monteiro Freitas e os bailarinos. “Teve como princípio a Marlene vir conhecer o elenco e cada bailarino poder conhecer depois a sua visão. Isso foi muito rico porque houve uma troca muito grande de ideias, sendo que nenhum dos lados perdeu a sua identidade”, diz Henrique Amoedo, diretor artístico da Dançando com a Diferença ao Observador. Acima de tudo, sublinha, existiu desde logo uma naturalidade entre as linguagens, uma vez que a abordagem de trabalhar sobre padrões e corpos distintos de uma dança dita académica já estava bem presente no trabalho de Marlene, que nos últimos anos desenvolveu peças como “Bacantes – Prelúdio para uma Purga” (2017), “Jaguar” (2015) e “De Marfim e Carne — As Estátuas Também Sofrem” (2014).

“A nossa aproximação aos diferentes coreógrafos leva em consideração como são as suas abordagens de trabalho, pensando desde logo na nossa companhia e nas suas característica. A verdade é que a questão dos corpos de diferentes dos cânones é algo já presente na obra da Marlene”, completa o diretor artístico.

Nos movimentos, mas também na parte mais plástica de “Ôss”, esse espírito vive por si só, sem que a estranheza tome conta do palco ou pareça ter impacto no seu resultado final. “É como se ela própria já procurasse essa diferença. Está lá naturalmente, o que também contribui para a sua coerência.”

No espetáculo que agora chega a Lisboa, depois de Paris e de uma antestreia em Évora, no Teatro Garcia Resende, é a desconstrução que se celebra

Laurent Philippe/divergence-images.com

Numa entrevista concedida ao Observador em 2020, a coreógrafa realçava como o palco é “o lugar que estimula, fortalece e concede elasticidade ao músculo da imaginação”. Na mistura inteligente entre a cultura pop, a poesia e um lado mitológico carregado, a sua leitura torna-se marcante para a experiência do espetador, que entra necessariamente no desenrolar de acontecimentos que sucedem à sua frente. As imagens que saltam à vista são reconhecidas e contribuem para esse lado de opulência, que se cria entre os bailarinos e o público. Tal qual esse processo digestivo de criação que a coreógrafa descrevia na mesma entrevista:

“Comemos imagens, salivamos ideias e trituramos medos. O que me interessa é a possibilidade de mobilizar uma equipa de trabalho, no sentido de proporcionar ao público uma experiência marcante. Se esse resultado é ou não, pode ou não, ser mainstream, não me preocupa.”

No espetáculo que agora chega a Lisboa, depois de Paris e de uma antestreia em Évora, no Teatro Garcia Resende, é a desconstrução que se celebra. Mas não apenas dos corpos, marcados pelas suas limitações. “Trata-se da desconstrução do todo, do corpo e do belo. É no fundo uma desconstrução da dança contemporânea em si”, explica Henrique Amoedo. Nessa jornada de olhar partilhado, vai-se então ao esqueleto da companhia, sediada na Madeira, e que se tornou numa referência nacional e internacional no panorama artístico europeu quando se fala de arte inclusiva.

Mas vai mais longe. Ao recordar-se a história de May B de Maguy Marin, que há pouco mais de 40 anos, apresentou, pela primeira vez, corpos diferentes, distantes dos cânones da dança académica, sendo vaiada por isso, “Ôss” é a confirmação de que no contexto da arte contemporânea essas fronteiras já estão ultrapassadas. A reflexão que se produz em palco é necessariamente mais ampla: diz respeito a todas as companhias e elencos, a todos os criadores e espectadores que, ao embarcarem nesta criação, poderão refletir sobre o que interessa, acima de tudo, no que ao movimento e à dança diz respeito, mesmo quando apresentada por diferentes tipos de corpos. É a diferença como exemplo.

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