Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Num Mundial não há propriamente aquele conceito do clube favorito. Melhor, pode haver mas para aqueles que não têm a sua equipa no Qatar e que quase por instinto escolhem uma outra para apoiar. De resto, não há grandes dúvidas (salvo raros exceções): trabalho à parte, torce-se pelos nossos. Ainda assim, por variados motivos, há sempre margem para outras simpatias que não a nossa. Esta noite, no palco que vai receber a final da competição, cruzavam-se duas que é inevitável puxarem pela parte mais sentimentalista que todos temos. Do lado da Argentina, é impossível passar ao lado de uma paixão de futebol que se confunde com a maneira de ser, dos adeptos que vieram sem bilhete e de manhã já estavam à porta do Media Ticketing em busca de um qualquer milagre aos hinchas em romaria no metro. Da parte do México, também forte ao nível do barulho, é impossível passar ao lado da devoção dos adeptos à sua El Tri e ao jogo em si, com uma presença maior em alguns encontros do que as próprias formações que estão dentro de campo.

Nas casas de apostas, eram as duas com mais probabilidades de passar à próxima fase; na realidade, e depois do triunfo da Polónia frente à Arábia Saudita, quem perdesse estava fora (ou quase) do Mundial. E havia de forma incontornável duas figuras a marcar a partida. Uma incontornável e com lugar cativo em tudo onde esteja e participe chamado Lionel Messi. Outro em função do contexto e do trajeto que fez até este Mundial de seu nome Tata Martino. O técnico que já não é propriamente muito adorado entre os mexicanos a não ser que consiga o tal “quinto jogo” que é o mote de um dos cânticos dos adeptos (ou seja, atingir os quartos) ia ter pela frente um de dois cenários: afastar a “sua” Argentina ou colocar-se a jeito de ser afastado do “seu” México. E tudo isso teria implicações no número 10, antigo discípulo na seleção e no Barça.

Numa fase em que se assinalam os dois anos da morte de Diego Armando Maradona, os adeptos argentinos pediam aquela mãozinha do seu Deus lá em cima para prolongar aquela que é última volta de Messi neste carrossel do futebol ao mais alto nível na seleção. Antes do Mundial, os devotos da Albiceleste não tinham um qualquer outro capítulo bíblico que não fosse o fim do 10 em ombros pelos companheiros a cumprir aquilo que ainda lhe falta 40 anos depois do primeiro Campeonato do Mundo em que El Pibe participou; a seguir ao autêntico descalabro na segunda parte do encontro com a Arábia Saudita, todos desceram à terra percebendo que não há fé que valha quando a atitude, o compromisso e a entrega ficam abaixo do opositor (neste caso extensível às bancadas onde os Falcões Verdes foram também arrasadores). “Esperemos que possamos brindar esta data com uma alegria para que nos veja desde o céu”, resumira Scaloni.

O treinador teria de fazer algo e não foi de modas, mudando metade da equipa titular frente à Arábia Saudita com o condão de não colocar quem a imprensa e os adeptos pediam nem sequer mudar o plano tático no papel. Nas laterais foi troca por troca, agora com Montiel e Acuña de início; no centro da defesa também, entrando Lisandro Martínez em vez de Romero; no meio-campo subiam às opções iniciais Guido Rodríguez (e não Enzo Fernández) e Mac Allister (e não Correa ou Dybala). E era aqui nestas duas trocas que poderia começar a redenção ou o descalabro dos sul-americanos, com a colocação de Rodrigo de Paul à frente de Guido e Mac Allister bem mais por dentro do que Papu Gómez no encontro inaugural.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nada resultou. E até quem escolhe as músicas do estádio parecia estar a adivinhar, com um pedido ao divino via “Life is Life” que passou duas vezes no Lusail antes do apito inicial para haver uma mãozinha de Deus. Houve mas pelo seu sucessor, o pé esquerdo de Leo Messi (logo no dia em que igualava o número de jogos de El Pibe em Mundiais). Se os mexicanos perguntavam onde estava o Messi depois da derrota da equipa das Pampas frente à Arábia Saudita, agora ficaram a saber e da pior maneira possível…

Para quem estivesse a ver o jogo mais atento ao som do que propriamente à imagem poderia pensar que aos 15′ o México ganhava e dominava, tão sonoros eram os olés que vinham das bancadas. Não era um sinal de desrespeito, também não era um sinal de nada de golos, era apenas uma forma de sentir o jogo que no nulo com a Polónia chegou apenas cinco minutos depois do apito inicial. Tiveram um condão: acordaram todos os adeptos argentinos, a dar show antes da partida mas mais sossegados no seu arranque. Com quase meia hora de jogo, não havia sequer uma oportunidade, um lance de perigo, alguma coisa daquelas que nos move de forma natural para a conversa com quem está ao lado. O México porque não queria, a Argentina porque não conseguia. O herói nacional Chucky Lozano contava apenas com uma arrancada parada em falta, o herói mundial Lionel Messi somava uma finta com arrancada que se perdeu antes do último terço.

Acuña, que tinha sido “virado” por Nestor Araújo, ainda teve um lance no mínimo dos mínimos daqueles mínimos imprudente com uma pisadela em Álvarez que lhe podia ter saído caro mas o encontro até decaiu de qualidade até ao intervalo pelo jogo trapalhão da Argentina sem perceber que nem sempre o meio é uma virtude (Montiel à direita também não ajudava muito nisso) e pela incapacidade do México em esticar jogo até Chucky ou Vega. Assim, e entre o nulo registado aos 45′ que ainda assim era favorável aos mexicanos, nota apenas para um cabeceamento muito ao lado de Lisandro Martínez na única aparição do avançado no jogo (40′) e um livre direto de Vega para as mãos de Emiliano Martínez no único tiro enquadrado (45′).

A segunda parte teria obrigatoriamente de ser diferente mas a postura dos dois conjuntos manteve-se até que Lionel Messi deixou o modo desligado do jogo sem grande inspiração para decidir a partida num daqueles momentos que o procuram para ser idolatrado por todos (64′). Reação do México? Nada. Mesmo nada. Zerinho. E ainda foi Enzo Fernández, que entrou para ser ‘6’ e dar outro critério na primeira fase de construção mas ganhou depois asas quando Scaloni quis defender a vantagem colocando uma linha de três, a fechar as contas com um golo soberbo que surgiu quase como prémio para tudo aquilo que tem feito neste ano civil de 2022, a começar no River Plate e a terminar no Benfica (87′).

A pérola

  • É verdadeiramente impressionante aquilo que Lionel Messi ainda consegue fazer num jogo aos 35 anos. Aliás, se o número 10 tivesse um outro apelido e currículo tinha sido uma das primeiras opções a sair perante o pouco que tinha feito: poupa-se a defender, foi forçado a recuar muito para tocar na bola de frente para o jogo, nem de livre direto estava a ser feliz. No entanto, a melhor tática para qualquer treinador num encontro sem oportunidades é nunca beliscar aquele que pode decidir sozinho o jogo apenas porque foi e continua a ser melhor do que os outros. Entre tanta decisão errática, aí Scaloni não falhou (nem nunca iria falhar). E o capitão resgatou o conjunto das Pampas de maiores problemas.

O joker

  • A escolha mais artística seria colocar aqui também Messi. Caso resolvido. Até porque facilitava aquela que era uma escolha sempre complicada, tendo em conta que a Argentina não teve ninguém que se elevasse muito acima dos outros a nível individual. Mac Allister pouco ou nada deu a mais do que Papu Gómez, Guido Rodríguez foi sacrificado quando estava a cumprir, os laterais não foram capazes de fazer tudo o que Scaloni queria (embora com Acuña bem melhor do que Montiel). Assim, é justo reconhecer a importância de Lisandro Martínez na equipa, não só pelo que defende mas também por ter saída de bola e um posicionamento que permitiu a Acuña subir pela esquerda. Depois, entrou Enzo Fernández. E não só pelo golo mas pelo que joga precisou de pouco para mostrar que é titular de caras…

A sentença

  • Este é um daqueles grupos embrulhados onde a lotaria pode tocar a todos na última jornada, sendo que no caso do México as coisas ficaram bem mais complicadas. No caso da Argentina, depende apenas de si na última jornada frente à Polónia não só para passar aos oitavos como para garantir a primeira posição em caso de triunfo, sendo que um empate pode chegar caso o México vença a Arábia Saudita. Do lado dos mexicanos, terão de ganhar o encontro com os sauditas, esperar que os argentinos ganhem aos polacos e anular a diferença de golos no confronto direto com Lewandowski e companhia.

A mentira

  • Foram vários os jogos onde a notícia estava nas bancadas. Ou porque falhava a aplicação dos bilhetes e entrava tudo com via verde sem mostrar nada, ou porque saíam milhares de pessoas ao intervalo com algumas nas imediações à espera dessa “goela” para entrarem aos 46′, ou porque pura e simplesmente não estava cheio e a organização anunciava que estavam mais espectadores do que a própria lotação do estádio. Tudo correto, tudo aconteceu, esta noite houve um festival à parte no Lusail. Hoje, a notícia não estava na bancada, a notícia era a bancada. E as melhores exibições foram as das bancadas, com as duas enormes falanges de apoio a mostrarem aos locais o que é a emoção verdadeira do futebol.