Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

“Como é que vamos convencê-lo que não pudemos entender que é um ser humano, uma pessoa com um talento inigualável, o melhor jogador do planeta mas no final uma pessoa. Como é que vamos convencê-lo a não ser parando um segundo para nos darmos conta de que não é responsável pela raiva que nos provoca a derrota, que muitas vezes tem mais a ver com as nossas próprias frustrações que são despertadas. Vamos olhar-nos ao espelho e perguntar-nos se exigimos de nós mesmo 1% daquilo que exigimos deste menino que na verdade nem conhecemos.

Com Enzo a 5, jogam cinco vezes mais e até podiam ter dado cinco (a crónica do Polónia-Argentina)

Como vamos convencê-lo de que é difícil para nós ver que o mundo inteiro o lisonjeia, que nas férias pode estar deitado numa praia e está lá a correr e a representar as nossas cores para que possamos ver se corre ou se canta o hino. Faça o que quiser, Lionel, mas, por favor, pense em ficar. Mas fique por aqui para se divertir, que é o que essas pessoas lhe tiraram. Num mundo de pressões ridículas, eles conseguem tirar o que há de mais nobre num jogo: a diversão. Enquanto criança, provavelmente sonhava em representar o seu país e divertir-se. Vê-lo jogar com o azul claro e o branco é o maior orgulho do mundo. Jogue para se divertir porque quando se diverte, não tem ideia da diversão que nós temos. Obrigado e desculpe…”

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Em 2016, quando tinha apenas 15 anos e despontava nas escolas do River Plate, Enzo Fernández escreveu uma carta ao ídolo Lionel Messi para que repensasse a decisão de retirar-se da seleção da Argentina após a derrota na Copa América; agora, seis anos depois, está a tornar-se num dos principais obreiros para que o 10 possa ganhar o seu último Mundial da carreira, que deve coincidir com o final da carreira internacional com a certeza de que se jogar todos os encontros e se for à final ficará como o jogador com mais encontros de sempre em fases finais da competição. E mesmo numa equipa que tem Ángel Di María, Rodrigo de Paul, Lautaro Martínez ou Julian Álvarez, é o médio do Benfica que está a ganhar mais estatuto.

Ainda no aquecimento, quando foram anunciados os onzes iniciais, o número 24 mereceu a segunda maior ovação a seguir a Lionel Messi. Depois de não ter cedido ao que os adeptos e a imprensa pediam no jogo com o México, Scaloni abdicou de Guido Rodríguez no meio-campo e lançou o jovem jogador de 21 anos como um ‘5’, à frente da defesa e na primeira fase de construção. Mais tarde, com Paredes em campo, Enzo teve espaço e permissão para subir mais e fez a assistência para o 2-0 de Julian Álvarez. Pelo meio, passou, variou de corredores, arriscou também a meia distância sem que o capitão visse nisso um problema mesmo nas situações em que poderia ter assistido, assumiu. E foi não só essa forma de jogar mas também a atitude e a inteligência com que controlou o encontro que mereceu grande respeito por parte de Messi. Quando saiu, após mais uma boa recuperação sobre Lewandowski, teve o prémio de ouvir o estádio a cantar o seu nome.

“Nunca quis mostrar as fotos que tinha aos dez anos porque estava todo inchado. Através de um amigo, fui eu que o coloquei num centro de alto rendimento. Perdeu cinco quilos num mês e já não parou mais. A minha mulher levavo-o para os treinos no coletivo [autocarro urbano] porque não tínhamos um veículo. Iam ao meio dia e por volta das 18h ou 19h voltavam para casa” contou recentemente o pai, Raúl Fernández.

Desde o momento em que escreveu a carta a Messi até aqui, Enzo acabou a formação, estreou-se com apenas 18 anos na equipa principal com Marcelo Gallardo, saiu por empréstimo uma temporada para o Defensa y Justicia e deu o grande salto neste ano civil, com dez golos e sete assistências em 28 jogos antes de rumar ao Benfica depois da eliminação na Taça dos Libertadores. O grande arranque de época na Luz valeu-lhe a presença no Mundial, com números que fizeram a diferença na primeira titularidade que teve na seleção e na prova: 78 minutos, uma assistência, 94 passes com 91% de eficácia, recuperações, interceções e 100% de duelos ganhos. Coincidência ou não, o conjunto de Scaloni fez a melhor exibição no Qatar, ganhou à Polónia por número que até foram escassos e garantiu o primeiro lugar. Já Enzo garantiu vaga no onze.