Doha, 1 de dezembro, 4.º minuto do jogo entre Canadá e Marrocos. Num lance de pressão do ataque marroquino, um erro do guarda-redes canadiano deixou a bola à mercê de Hakim Ziyech que, com um chapéu tirado à medida do guardião adversário, adiantou Marrocos no marcador rumo a um apuramento para os oitavos-de-final que não acontecia desde 1986.

Além do impacto desportivo, o golo foi também o culminar de um longo percurso para o médio do Chelsea, sinuoso e repleto de altos e baixos: desde tragédias familiares a desavenças com o selecionador nacional que quase o atiraram para fora do Mundial, a “estrela” do Norte de África percorreu um caminho acidentado até chegar aos palcos maiores no Qatar.

A sua história começa não em Marrocos, mas em Dronten, nos Países Baixos. Foi lá que Ziyech, filho de emigrantes, nasceu e cresceu, e onde despontou para o futebol ao serviço das equipas locais, o Reaal Dronten, primeiro, e o ASV Dronten, depois. O seu talento com a bola nos pés foi evidente desde cedo, mas por pouco não foi desperdiçado: em 2006, quando tinha apenas 13 anos, o jovem Hakim perdeu o pai para a esclerose múltipla, como o próprio contou em 2016 ao diário neerlandês De Volkskrant.

“A doença destruiu-o. Não podia andar, comer ou falar. Tinha de me deitar nessa noite, mas queria ficar com ele. Encostei-me à cabeceira da sua cama, depois saí por momentos, e quando voltei ouvi a minha família a chorar. Já não voltei à escola, e o futebol tampouco me importava. Deixei tudo para trás”.

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Mentor (com ligação a Portugal) impediu-o de dizer adeus ao futebol

Poderia ter sido o fim da história de Ziyech, e teria sido compreensível. Esteve perto de o ser, não fosse a intervenção crucial de uma figura improvável — Aziz Doufikar, ex-internacional marroquino e o primeiro jogador daquele país a jogar profissionalmente nos Países Baixos. A sua carreira tem, curiosamente, uma ligação forte a Portugal, onde passou grande parte das décadas de 1980 e 90 ao serviço de clubes como Sporting de Espinho, Esmoriz e Vitória de Setúbal.

Após se retirar do futebol profissional, Doufikar optou por continuar a jogar num clube amador — precisamente o Dronten, onde o filho militava nas camadas jovens, e onde era amigo do jovem Hakim Ziyech.

Vi o Ziyech a jogar com ele e pensei logo: ‘Uau!’! Vi logo que estava ali um grande jogador e perguntei ao meu filho quem era”, contou o antigo internacional ao Goal.com.

Hakim e a família Doufikar começaram a aproximar-se (relação que se mantém até hoje). Foi nessa altura que o seu pai morreu, e que o jovem considerou abandonar o desporto. “Ele disse que não queria jogar mais. Eu estive lá a tentar puxá-lo para cima outra vez, e disse-lhe que ele tinha de continuar pela memória do pai” recordou o seu mentor. Dias depois, Ziyech decidiu regressar. Foi o próprio Aziz Doufikar que ligou para o clube a explicar a situação e a assegurar a continuidade do jovem.

Ziyech acabou por prosseguir a formação no Heerenveen, clube onde se estreou no nível sénior em 2012. Rapidamente mostrou qualidade, pelo que seria uma questão de tempo até chamar a atenção dos selecionadores nacionais. Selecionadores no plural, já que o médio era elegível para representar dois países: Marrocos, a terra dos pais, e os Países Baixos que o viram nascer. Foi esta última que começou por representar, nos sub-20 e sub-21, até que, em 2015, foi chamado pelo selecionador marroquino Badou Ezzaki para jogos amigáveis frente a Estados Unidos e Letónia.

Ziyech aceitou, para irritação de muitos que viam nele uma futura esperança neerlandesa numa altura em que os Países Baixos enfrentavam um período de renovação que viu a “laranja mecânica” falhar o apuramento para o Europeu de 2016 e para o Mundial de 2018. Entre elas esteve a de Marco van Basten, lendário internacional que tinha treinado Ziyech no Heerenveen, e que não poupou na críticas ao craque: “Quão estúpido tens que ser para escolher jogar por Marrocos quando estás na corrida por um lugar na seleção dos Países Baixos”?

Ziyech preferiu ver as coisas de outra forma. “Eu só quero jogar. Não falo o idioma, mas sei de onde venho”. O seu contributo foi decisivo para que Marrocos conseguisse qualificar-se para o Rússia 2018, um apuramento que fugia há duas décadas.

De excluído pelos selecionadores a herói no Qatar

Mas nem por isso conseguiu escapar à polémica. Problemas comportamentais fizeram treinadores questionar a sua ética profissional e viriam a marcá-lo ao longo dos anos como uma espécie de enfant terrible, nos clubes e na seleção. No Twente, para onde se transferiu em 2014 e onde permaneceu durante dois anos, chegou a ser capitão de equipa, mas perdeu a braçadeira após um desentendimento com o treinador Alfred Schreuder. Também na seleção nacional criou inimigos, razão pela qual Hervé Renard (atual treinador da Arábia Saudita) o deixou de fora da convocatória para a Taça das Nações Africanas em 2017.

Os problemas persistiram com o sucessor de Renard, o bósnio Vahid Halilhodžić. O astro marroquino esteve um ano sem constar das convocatórias internacionais. Questionado sobre o porquê de deixar o médio de fora da fase de qualificação para o Mundial do Qatar, o técnico afirmou que “nem que fosse Lionel Messi” poderia chamar um jogador que “não quer treinar e finge estar lesionado”. Ziyech recorreu à sua conta de Instagram para negar as acusações de Halilhodžić, que apelidou de “palhaço”.

Independentemente da verdade neste conflito, certo é que Walid Regragui, que substituiu o treinador dos Balcãs a poucos meses do início do Campeonato do Mundo, teve como primeiro item na ordem de trabalhos a reintegração de Ziyech nos “Leões do Atlas”. Pela sua parte, o médio tem correspondido, sendo uma peça-chave na caminhada marroquina no Qatar, onde já regista um golo e uma assistência. Doufikar não esconde a sua satisfação: “Estou tão orgulhoso dele. Conseguir o que ele conseguiu é um feito extraordinário. Não acredito onde conseguiu chegar, tendo partido com tão pouco“.