Não reconhecem a República Federal da Alemanha, o seu sistema jurídico ou os seus órgãos estatais. Aliás, nem sequer reconhecem as fronteiras do país, tal como foram delineadas no pós Segunda Guerra — para os membros dos “Cidadãos do Reich”, “Reichsbürger” no original, as linhas que valem são as do antigo Império Alemão, e a organização do país em 1945 mais não foi do que uma “construção estatal ilegal dos Aliados”.

Por isso mesmo, também se recusam a pagar impostos ou taxas municipais, a identificar-se perante elementos da autoridade, a cumprir as leis em vigor ou a reconhecer as ordens judiciais de apreensão de bens ou de penhoras — a que, por motivos óbvios, são altamente propensos.

Alemanha deteve 25 pessoas que estariam a preparar um golpe de estado e invasão do parlamento

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há mais: alguns dos seus membros ou subgrupos chegam mesmo a imprimir os seus documentos, desde cartas de condução a passaportes; outros a cunhar o seu próprio dinheiro.

Outros ainda têm fundado os seus próprios territórios e governos, com nomes como “Segundo Império Alemão”, “Estado Livre da Prússia”, “Principado Germânia” ou “Reino da Alemanha”. Este último foi o nome escolhido por Peter Fitzek, o ex-chef, ex-professor de karaté e ex-tatuador que, em 2012, depois de por várias vezes ter tentado ser eleito presidente da câmara de Wittenberg, no estado da Alta Saxônia, resolveu autoproclamar-se rei, com direito a cerimónia de coroação e tudo.

Neste caso, Pedro I, como passou a ordenar que lhe chamassem, acabou a ser detido e condenado em 2017 a uma pena de prisão, por ter desviado 1,3 milhões de euros do banco que criou no reino e onde mais de 600 súbditos terão depositado dinheiro.

Já Henrique XIII Reuss, um dos 25 membros do grupo esta quarta-feira detidos por suspeita de estarem a preparar um golpe de estado no país, terá mesmo o título de príncipe. De acordo com a Reuters, o homem, de 71 anos, é um dos últimos descendentes de uma dinastia que chegou a governar territórios no leste da Alemanha. Segundo o plano gorado para derrubar o atual regime, seria ele a assumir a liderança do novo Reich.

Homem, com mais de 50 anos, antissemita e nazi. Eis o perfil do “Cidadão do Reich”

Outra estratégia que os membros do grupo — de extrema-direita, com ligações aos neonazis e tradicionalmente portadores de armas, legais ou não — têm adotado é a de inundar os serviços estatais (cuja legitimidade não reconhecem) com pedidos, moções e requerimentos de contestação, característica que lhes tem valido o apodo de “terroristas do papel”.

Não é o único termo alternativo por que são conhecidos os membros do grupo que esta quarta-feira saltou para a imprensa internacional por alegadamente estar a preparar um golpe de estado violento, que passaria pela invasão do Parlamento alemão. Há muito conhecidos pelos jornais e pela opinião pública alemã, os “Cidadãos do Reich” têm sido descritos também como “teóricos da conspiração”, sobretudo pelas ligações mantidas ao longo da pandemia com movimentos negacionistas e anti-vacinas, ou até “malucos inofensivos”.

Quando, em abril de 2017, publicou um folheto para distribuir junto de polícias e administração pública com conselhos práticos sobre como lidar com os “Cidadãos do Reich”, o ministro do Interior do estado de Hesse empregou todos os termos descritos acima.

Ainda assim, também deixou bem explícito de que de “inofensivo” grande parte dos membros do grupo tinha muito pouco. “Aqueles que são ao mesmo tempo racistas ou anti-semitas, xenófobos, nacionalistas exagerados ou que defendam o movimento völkisch devem ser considerados extremistas de direita”, escreveu Peter Beuth, a abrir o manual, de 28 páginas. “Alguns ‘Cidadãos do Reich’ tentam defender e impor a sua ideologia pela força e com recurso à violência. Isto afeta a segurança do nosso país.”

Como esta quarta-feira ficou expresso, por meio de uma operação policial que envolveu cerca de três mil agentes, incluiu buscas em 130 locais em 11 dos 16 estados da Alemanha e culminou na detenção de 25 elementos do grupo de extrema-direita, as autoridades alemãs levam a sério a ameaça do Reichsbürger.

Não é caso para menos, já avisava em 2018 Barbara Manthe, investigadora principal do projeto “Terrorismo de direita na República Federal da Alemanha, 1970-1990”, da Universidade de Ciências Aplicadas de Düsseldorf. Para além de elencar uma série de incidentes envolvendo membros do grupo, a investigadora alertava para o crescimento do grupo, que então teria cerca de 16 mil membros, de acordo com as estimativas dos serviços de inteligência alemães. Atualmente, serão cerca de 21 mil e cerca de 5% já terão sido classificados como extremistas de extrema-direita, escreveu esta quarta-feira a Deutsche Welle.

De acordo com a mesma publicação, a maior parte dos membros dos “Cidadãos do Reich” são homens, têm mais de 50 anos, estão dispersos por todo o país e “seguem ideologias populistas de direita, antissemitas e nazis”.

O facto de parte considerável dos seus elementos ter pertencido às Bundeswehr, as Forças Armadas unificadas da Alemanha, ou à NVA, o Exército Nacional do Povo da República Democrática Alemã, tem feito disparar ainda mais os alarmes das autoridades, que consideraram no último relatório sobre a organização, que os “Cidadãos do Reich” estão preparados para cometer “graves atos de violência”.

Do homicida Wolfgang P. à montra negacionista

Na verdade, o plano que esta quarta-feira foi alegadamente abortado pela polícia alemã está longe de ser o primeiro esboçado pela organização, que terá estado por trás da tentativa de invasão ao Reichstag no final de agosto de 2020, no decorrer de uma manifestação anti-vacinas em Berlim.

“Os ‘Cidadãos do Reich’ abraçaram os protestos públicos contra as restrições do coronavírus como uma ocasião bem-vinda para se reunirem e ganharem visibilidade nas ruas”, disse na altura à BBC Axel Salheiser, investigador alemão do Instituto para a Democracia e a Sociedade Civil. “Eles estão mais presentes do que nunca”.

Antes disso, os membros da organização de extrema-direita tinham-se notabilizado essencialmente pelas apreensões massivas de armas — muitos foram inclusivamente impedidos de as ter, não obstante as licenças legais que detinham —, e por atos de violência contra elementos da autoridade, invariavelmente quando visados por não cumprirem as suas obrigações legais como cidadãos da República Federal da Alemanha.

Foi o que aconteceu, por exemplo, em setembro de 2021, a um homem de 47 anos de Linden, no estado da Renânia-Palatinado.

Suspeito de tentativa de fraude e falsificação, o homem, com ligações ao grupo de extrema-direita, tentou impedir os agentes da polícia que se preparavam para lhe revistar a casa com tiros de besta. Acabou preso, acusado de tentativa de homicídio e de resistência à polícia — mas só porque a seta que disparou acabou por ficar cravada no teto e não feriu ninguém.

Cinco anos antes um caso idêntico, de desfecho bem menos feliz, tinha colocado definitivamente o grupo no radar das autoridades e da opinião pública alemã.

Aconteceu em outubro de 2016, quando quatro polícias foram enviados à casa de Wolfgang P., um “Cidadão do Reich”, então com 49 anos, para proceder ao arresto das 31 armas de fogo que ali detinha ilegalmente.

O homem, que se recusava há anos a pagar impostos, chamou a atenção das autoridades por isso mesmo e por deter uma série de armas, que se recusou a entregar voluntariamente.

Vivia numa casa que tinha herdado em Georgensgmünd, no estado da Baviera, à porta da qual tinha desenhado uma linha amarela, à laia de fronteira. A caixa de correio dizia “Território governamental de Wolfgang” e “Aqui minha palavra é lei!”.

Na manhã em que a polícia lhe bateu à porta, em vez de abrir, disparou; onze tiros no total. Equipado com um colete anti-balas, apontou aos agentes, atingiu mortalmente um deles, de 32 anos, e feriu outros dois. Antes de o condenar a prisão perpétua, a juíza encarregue do caso realçou em tribunal: “Demonstra pensamentos muito incomuns e anormais”.