Quando a sorte foi distribuída à nascença, Leila (Taraneh Alidoosti), a protagonista de “Os Irmãos de Leila”, o novo filme do iraniano Saaed Roustayi (autor do soberbo “A Lei de Teerão”), chegou já as portas tinham fechado e as migalhas sido varridas. Leila tem 40 anos, nunca casou, sofre de dores de costas crónicas e trabalha num centro comercial para sustentar toda a família, que vive numa apertada casa num bairro pobre de Teerão: o pai, homem mesquinho, viciado em ópio e obcecado em ser nomeado patriarca após a morte do primo mais velho, a mãe, que a despreza, e os seus quatro irmãos, fracos, falhados e inúteis, e carregados de dívidas.

O mais novo não tem emprego e passa o dia a ver “wrestling” americano na televisão e a fazer exercício físico; o segundo sofre de obesidade mórbida, e o que ganha a limpar os lavabos do centro comercial em que Leila labuta, mal lhe dá para sustentar a mulher e a caterva de filhas; o terceiro mete-se em esquemas suspeitos para enriquecer depressa, mas anda sempre sem um tostão; e o quarto acaba de ser despedido da fábrica em que trabalhava, que faliu e ficou a dever meses e meses de ordenados aos operários, e voltou para casa dos pais com uma mão à frente e outra atrás.

[Veja o “trailer” de “Os Irmãos de Leila”:]

Além de trabalhadora incansável e campeã do estoicismo, Leila é inteligente e tem iniciativa, e engendra um plano para sair da pobreza e levar a família com ela. Alugar, a meias com os irmãos, uma nova loja que vai ser construída no movimentado centro comercial onde trabalha. Mas para isso há que ter o dinheiro do depósito, e o que ela e os irmãos conseguem juntar não chega. Precisam das 40 moedas de ouro que o pai tem postas de parte. Só que ele vai dá-las de presente ao filho do seu manipulador e ganancioso primo mais novo que se vai casar, para em troca ser designado patriarca por ele. E é aí que Leila toma uma decisão drástica, que vai ter o efeito de uma granada de fragmentação atirada para o meio da família.    

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Se em “A Lei de Teerão” Saaed Roustayi aplicava o seu taquicárdico estilo de realização a um enredo em que o “thriller” urbano dava o braço ao realismo social, e orquestrava quer as movimentações de massas de drogados e de criminosos encarcerados, quer as agentes da brigada anti-droga em acção por ruas e ruelas, em “Os Irmãos de Leila”, o realizador concentra os acontecimentos num punhado de espaços fechados e limitados, em especial a velha e acanhada casa da família, transformando-os em diminutas arenas onde as personagens se confrontam. E em que Leila acaba a lutar sozinha para fugir ao desespero e a um destino miserável que sabe que não merece, tentando, ao mesmo tempo, salvar os seus irmãos deles mesmos – apesar de não o merecerem.

[Veja a conferência de imprensa do filme no Festival de Cannes:]

Os filmes de Saeed Roustayi centram-se nos conflitos humanos e na sua complexidade emocional e reverberação social (o primeiro, “Life and a Day”, de 2016, inédito em Portugal, passa-se também no seio de uma família pobre), e em “Os Irmãos de Leila”, ele encontra mais uma vez no agregado familiar o grupo privilegiado para se expressar. E com um realismo desassombrado e áspero, mas nunca miserabilista, daquele que faz com que pareça que as coisas estão mesmo a acontecer ante os nossos olhos em vez de estarmos a assistir a uma ficção encenada. Roustayi faz grande cinema arrancado à vida, e verdadeiramente humanista, sem a carga piedosa e indulgente que costuma estar associada a esta palavra.

[Veja uma cena do filme:]

Tal como “A Lei de Teerão”, “Os Irmãos de Leila” é um filme “character driven”, propulsionado pela sua personagem principal e em que tudo anda a reboque dela. E por isso, e sem nunca esquecermos a homogeneidade na qualidade de todo o elenco (no qual encontramos algumas caras já conhecidas de “A Lei de Teerão”), todos os olhares convergem para Taraneh Alidoosti,  personificando com persuasiva discrição a batalhadora e sofredora Leila, o gerador emocional, azimute de sensatez e trave-mestra narrativa da fita, e o pulmão por onde passa todo o sopro dramático desta história dolorosa e penetrantemente humana, que se projecta do seu cantinho obscuro da Teerão pobre, para uma dimensão universal.