Na sala de imprensa do estádio do Al-Nassr, o Mrsool Park, todos os holofotes estavam apontados a Cristiano Ronaldo. A chegada do craque português à Arábia Saudita é já, ao terceiro dia de 2023, o acontecimento desportivo do ano e foi tratada com a pompa e circunstância esperadas, quer pelos milhares de adeptos que encheram as bancadas quer pelas dezenas de jornalistas que cobriram o evento.
Entre estes, uma figura em particular destacou-se das demais: uma mulher, de véu islâmico na cabeça, que serviu de anfitriã da conferência de imprensa que antecedeu a apresentação no relvado. Não foi caso isolado: já em frente aos adeptos, Ronaldo respondeu a perguntas de dois apresentadores – um homem e uma mulher que, para surpresa de alguns, tinha o cabelo destapado.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a ida de Ronaldo para o Al-Nassr.
Mas afinal quem são estas mulheres? A mestre de cerimónias da conferência de imprensa é Weam Al Dakheel; a do relvado chama-se Fatma Fahad. São ambas jornalistas da televisão saudita, e dois dos rostos mais visíveis das aparentes mudanças (que alguns entendem como mera propaganda), que têm vindo a ser apregoadas pelo regime saudita como parte da sua “Visão 2030”.
Do muito que se tem dito e escrito acerca deste plano estatal do governo de Mohammed bin Salman – que, na prática, se resume apenas a um objetivo declarado de reduzir a dependência económica do país das exportações de petróleo – um dos pontos mais polémicos tem sido, justamente, o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade saudita.
Por forma a combater esta perceção, a família real saudita tem, gradualmente, aberto algumas portas da sociedade civil à participação feminina – em 2018, por exemplo, foi permitido às mulheres conduzir. Paralelamente, os últimos anos também viram algumas personalidades subirem à condição de símbolos do progresso do regime. É esse o caso de Weam Al-Dakkheel.
Em 2018, a jornalista fez história ao tornar-se na primeira mulher a apresentar o telejornal da noite na televisão estatal; no mesmo ano, foi ainda nomeada para um cargo na direção da Autoridade de Radiodifusão Saudita (SBA). A própria Al-Dakkheel assume esse estatuto simbólico:
Sinto-me parte da mudança que está a acontecer no país, e que sou um símbolo do empoderamento feminino. É uma grande responsabilidade que tento cumprir bem, cumprir da forma correta”, afirmou numa entrevista em língua inglesa em 2019.
#Saudi journalist, Weam Al Dakheel (@WeamAlDakheel), is the first Saudi female to anchor the main evening news bulletin on Saudi national TV. Being successful in this field is very important to her as she is aware of the responsibility it comes with. #SaudiArabia #GameChangers pic.twitter.com/4Cj7ncTPiK
— Saudi Arabia (@saudiarabia) July 1, 2019
A sua presença na apresentação de Ronaldo não foi, por isso, coincidência. A ida de CR7 para a Arábia Saudita está, como se percebe, muito para lá de uma mera movimentação de desportiva. É também uma jogada de marketing e um acontecimento de grande visibilidade internacional para o país – com uma mulher em posição de destaque.
A jornalista que surpreendeu o ministro austríaco… em alemão
O mesmo é verdade para Fatma Fahad. A jornalista e apresentadora, que recebeu Ronaldo no relvado do Mrsool Park, é presença habitual na antena da Al Arabiya, canal cujas transmissões abrangem todo o mundo árabe. A sua indumentária habitual é em si mesma uma quebra clara com a tradição: Fahad costuma apresentar-se aos telespetadores de fato, longe da discrição do vestuário modesto imposto pelo islamismo.
De resto, Fahad chegou mesmo a protagonizar um momento caricato no plano internacional: em 2021, por ocasião de uma cimeira bilateral entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita e da Áustria, a jornalista surpreendeu o governante austríaco, Alexander Schallenberg, ao dirigir-se a ele em alemão fluente, antes de endereçar as perguntas em inglês.
As intenções do regime ficaram, deste modo, claras. E Cristiano Ronaldo acabou, ele próprio, por as referir. “Estou felicíssimo que o Al Nassr me tenha dado esta oportunidade para desenvolver não só o futebol, mas também junto de futuras gerações, incluindo as mulheres”.
Afinal de contas, os 500 milhões em salário têm em mente muito mais do que o rendimento desportivo: querem comprar uma melhoria na imagem do país.