Este artigo foi originalmente publicado no

10.º número da revista DDD – D de Delta.

Responsável pela área de economia social e direitos humanos da Vieira de Almeida e Associados, Margarida Couto é também CEO da Fundação Vasco Vieira de Almeida e preside à associação empresarial sem fins lucrativos GRACE, que atua igualmente nas áreas da responsabilidade social e da sustentabilidade.

Olhando para o que foi o teu percurso, que se divide entre uma primeira fase dedicada ao Direito mais puro e duro, e uma segunda fase ligada à sustentabilidade – quer pela liderança da Fundação Vasco Vieira de Almeida, quer pela do grupo GRACE –, fico curiosa em saber o que motivou essa mudança de direção.

Os primeiros 30 anos da minha carreira foram muito dedicados ao Direito porque me especializei numa área pouco típica numa firma de advogados: fui durante mais de 20 anos a sócia responsável pela área de comunicações, tecnologia e digital. Mas, em paralelo, sempre tive este bichinho do social, do sustentável. Aliás, quando era miúda, dizia que queria ser assistente social. Foi o meu pai quem me disse que se tirasse Direito também poderia ser assistente social. “Abre as tuas opções e depois logo vês.”

Foi o que fizeste.

Devo ao meu pai ser advogada. E tive a sorte de vir para um escritório cujo fundador, o Dr. Vasco Vieira de Almeida, era uma pessoa com uma fortíssima consciência social, porque tinha combatido o antigo regime, tinha estado preso, o que lhe dava uma visão da vida muito peculiar. Ele dizia muitas vezes que para se ser advogado na Vieira de Almeida e Associados (VdA), além de se ter grandes competências jurídicas, tinha de se ser bom cidadão. E como o meu lado de assistente social não tinha morrido completamente, comecei a incentivar o tema da responsabilidade social. Fomos a primeira firma de advogados a institucionalizar um programa pro bono. Não havia tradição de serviços jurídicos gratuitos para quem não tem capacidade económica de aceder à justiça, e, como é óbvio, nós sempre vimos o acesso à justiça como um tema de cidadania.

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E quando é que se dá a mudança definitiva para o lado responsabilidade social?

Sempre fui fazendo um bocadinho as coisas em paralelo. Comecei a perceber que nada se fazia sem as empresas. Acredito muito no poder transformador das empresas, venho do mundo corporate, é normal que tenha esse enviesamento. Tal como acredito muito no poder do cidadão, como é óbvio, e da cidadania responsável, que começa em nós e só depois é que vai para a empresa. Chegou uma altura da minha vida – isto não é um evento, é um processo – em que achei que poderia ter mais impacto se me dedicasse a esses temas. Também já tinha os meus filhos criados. E resolvi fazer uma mudança. Acho que a única coisa de que me arrependo, se me arrependesse de alguma coisa…

Ia perguntar isso mesmo, se te arrependes de alguma coisa.

Só me arrependo de não ter tomado a decisão um bocadinho antes. Apesar de tudo, a idade atrapalha um bocado os nossos planos. Gostava de poder dizer que dediquei 30 anos a cada coisa, mas já não vou poder…

O que é, em concreto, a Fundação Vieira de Almeida a que te dedicas?

Quando fizemos 40 anos – nós, VdA escritório, não VdA Sociedade de Advogados, porque a sociedade foi constituída em 1988, mas o escritório existe desde 1976 –, fizemos uma grande reflexão estratégica. Queríamos marcar os 40 anos da Vieira de Almeida com um projeto que fosse mesmo diferenciador, emblemático, agregador, que ligasse as pontas todas. E eu tinha este sonho da Fundação na minha cabeça há muitos anos, obviamente, um sonho difícil de concretizar. A decisão tinha de ser dos sócios, da partnership, e tinha de ser unânime, porque o dinheiro que vai para a Fundação sai direto do bolso dos sócios – não vale a pena esconder isso. Em 2016 constituímos a Fundação, que tem como missão a educação para a cidadania, ligada ao tema dos direitos humanos. Aliás, hoje eu sou sócia responsável pela área dos direitos humanos. A Fundação trabalha muito a inovação social.

Aquela história de que a maternidade não combina com ser sócia de um grande escritório? Errado. Há uma pré-condição: tens de querer muito. Eu queria muito. Adorava o que fazia, e quando és muito apaixonada…

Como se deu a tua entrada na VdA? Se bem me lembro, eras jovem e foste muito persistente.

Um dos grandes amigos do Dr. Vasco Vieira de Almeida contava-me imensas histórias dele, de quando foi preso ou de quando foi ministro em Angola, e comecei a ficar fascinada pelo personagem, a construir na minha cabeça aquele ídolo e a ideia de querer fazer o estágio com ele. Se é para ser advogada, é para fazer o estágio com o Vasco Vieira de Almeida. E, claro, achava que se tinha decidido isso, então o universo estaria de acordo comigo.

Mas não era bem assim.

Esse grande amigo do Vasco Vieira de Almeida falou-lhe de mim. Ele não precisava de estagiários, mas o meu amigo convenceu-o a receber-me. Lá tivemos uma conversa. Lembro-me de ele ter dito: “Margarida, parece-me tudo bem, mas temos só um problema: eu não estou a precisar de uma estagiária.” Disse-lhe que tínhamos mesmo um problema, porque desde o segundo ano da faculdade que queria trabalhar com ele, por isso tínhamos de arranjar uma solução. Nós tínhamos conversado sobre as áreas de Direito, o que eu gostava mais e menos. Estávamos a 1 de dezembro, e então ele disse que se até 1 de janeiro lhe apresentasse um trabalho em francês sobre marchés publics [contratação pública], que é um tema que ele sabia que eu detestava, iria para o escritório. E, pronto, apareci-lhe com o trabalho à frente e acho que ele sentiu que tinha de honrar a palavra.

Tens algum episódio que tenha sido particularmente desafiante?

Ui, tantos. Estava há sete meses na VdA, ainda estagiária, quando surgiu um cliente com um investimento. Atenção, eu entrei na VdA na altura da explosão do investimento estrangeiro em Portugal, devido à adesão à CEE. Havia muito investimento estrangeiro e “choviam” clientes. Havia um que queria fazer um investimento enorme no Algarve. Às tantas, era preciso ir a uma reunião em Londres e ele não podia. E eu pensei: se ele não pode, a reunião vai ser adiada, naturalmente. Mas não: “Margarida, eles não podem adiar a reunião, vai você.” E eu pensei: “Isto não está a acontecer.” Disse-lhe: “Senhor doutor, os meus cartões de visita dizem ‘advogada estagiária’.” E ele: “Eles não sabem o que é estagiária, até vão pensar que significa que é superqualificada.” Lembro-me de ter chegado ao cabeleireiro na véspera e ter dito que precisava de um penteado em que parecesse que tinha 30 anos.

Tinhas quantos?

Tinha 24. O meu marido, na altura namorado, foi-me buscar e disse que parecia 10 anos mais velha, e eu: “Yes!” Lá me meti no avião e fui para essa reunião achando que me estava a meter na maior trapalhada de sempre. Só para tu veres o quão ansiosa ia, o avião aterrou e eu ia a decorar todas as palavras que podiam surgir em inglês e podia não saber. O avião aterrou e aparece uma senhora a dizer que já toda a gente tinha saído. Nem percebi que tínhamos aterrado.

E correu bem?

Correu muito bem.

O que é que isso te ensinou?

Que a melhor coisa que o Vasco Vieira de Almeida fez por nós, sócios fundadores, foi atirar-nos para dentro de uma piscina sem pé e dizer: agora nadem. E ele fez isso a nossa vida toda. Quando foi o projeto da Ponte Vasco da Gama, nós também éramos muito jovens e ele pôs-nos a dirigir o projeto.

Praticamente estavas a dar à luz quando tudo se processa… Isso liga-se um bocadinho com a minha próxima questão, tu tornaste-te sócia da VdA com 32 anos.

Sim.

E conseguiste conciliar isso com a maternidade de cinco filhos.

Aquela história de que a maternidade não combina com ser sócia de um grande escritório? Errado.

Explica lá qual é o teu segredo.

Não há bem um segredo, há uma pré-condição: tens de querer muito. Eu queria muito. Adorava o que fazia, e quando és muito apaixonada…

E continuas a ser?

Sem dúvida, mas agora já não tenho filhos pequenos, é um bocadinho diferente. Eu era apaixonada pelo que fazia, mas sempre tive o sonho da maternidade desde miúda. E, às tantas, senti que era mesmo muito difícil conciliar as duas coisas, porque não só adorava o que fazia, como me entregava muito. Fiquei supercontente quando fiquei grávida do meu primeiro filho, mas supertriste porque pensei que isso não seria compatível com estar na VdA. Então, fui ter com o Dr. Vasco Vieira de Almeida a dizer que tinha de me ir embora, porque ia ser mãe e isso não era compatível, porque queria ser uma mãe presente. E ele: “Como assim, não é compatível?”

Estava grávida, tinha três semanas para acabar o contrato [da Ponte Vasco da Gama], e o médico disse que a criança tinha de nascer três semanas mais cedo. Lembro-me de me ter virado para o médico e ter dito: ‘Não pode ser, tenho um contrato para entregar, preciso dessas três semanas.’

Ias fazer o quê?

Ser professora de liceu, porque a minha mãe era professora e eu sabia que ela de manhã não estava, mas à tarde estava. E ele disse: “Se o seu problema é esse, então fica aqui em part-time.” Nunca imaginei que aquilo fosse possível, e claro que não era, mas ele sabia melhor do que eu. Trabalhei para aí três meses em part-time, depois comecei a trabalhar à segunda, à terça, depois à quarta, e, de repente, percebi que quando queres mesmo muito, as coisas são conciliáveis. Claro que há momentos muito difíceis.

Mas tinhas apoio?

Claro. E depois é isso, acho que também tive condições únicas. Primeiro, porque o pai dos meus filhos sempre foi um superpai, sempre presente, e nunca quis ser um obstáculo à minha carreira. Hoje é óbvio, mas na minha geração isso não era bem assim. Depois, tive muito apoio dos meus pais. Quando queria sair com o meu marido, conseguia deixar cinco filhos com eles. Nem toda a gente tem essa sorte. Muitas vezes diz-se que é tudo mérito, mas não. Nunca é tudo mérito, nem nunca é tudo sorte. Mas quando queres muito, acho que consegues.

E entregavas o trabalho.

Sim, e quando dizia que estava grávida, era festejado. Não era tipo: “ai, meu Deus, e agora o que vai acontecer?”. Eu tive dois filhos antes de ser sócia, um filho no ano em que fui sócia, e dois depois de ser sócia.

Mais a ponte.

Mais a ponte, exatamente. A ponte foi antes de ser sócia. Embora, atenção, a minha carreira…

Estavas quase a dar à luz quando entregaste o trabalho.

Estava grávida, tinha três semanas para acabar o contrato, e o médico disse que a criança tinha de nascer três semanas mais cedo. Lembro-me de me ter virado para o médico e ter dito: “Não pode ser, tenho um contrato para entregar, preciso dessas três semanas.” E ele: “Não está a perceber, o seu filho vai nascer amanhã.” Saí lavada em lágrimas. Felizmente, não nasceu no dia seguinte, mas três dias depois, o que deu uma margem. Acho que o facto de a maternidade ser celebrada na VdA fez com que não sentisse isso como um travão. A história poderia ter sido diferente se a receção fosse outra. Lembro-me só de uma vez quando eu… Na verdade, estive grávida sete vezes, mas por duas a coisa não progrediu. Portanto, houve sete vezes que entrei no gabinete do Dr. Vieira de Almeida, que era sempre a primeira pessoa que eu informava, a dar a notícia. À sétima vez, ele virou-se para mim: “Ó Margarida, outra vez? [risos] Não conhece uma coisa chamada contracetivos?” Mas era a brincar.

Vou passar aqui para o GRACE, que é a associação empresarial a que tu presides desde 2018. Qual é a tua visão para o futuro da associação face ao contexto disruptivo que estamos a viver?

Sou suspeita para falar, como é óbvio, mas acho o GRACE uma organização absolutamente extraordinária e muito importante para o ecossistema empresarial português. O GRACE, cujo acrónimo significa Grupo de Reflexão e Apoio à Cidadania Empresarial, nasceu no início de 2000 para ajudar as empresas a perceber que tinham de ser cidadãs. E nasceu muito virado para o lado social, na ligação das empresas à comunidade, um grande mapeamento da economia social, conhecer muito bem os atores sociais, as melhores respostas, e tentar fazer parcerias entre empresas e atores do setor social.

Tais como…

O GRACE tem mais de 100 parceiros da economia social. Tudo aquilo que eram as IPSS de grande resposta social, seja na área da infância, seja na terceira idade, na pobreza, nós conhecemos muito bem esse ecossistema. Hoje já são as empresas que vêm pedir para estar no GRACE, porque sabem que têm apoio e que aceleram a sua jornada de sustentabilidade. Antes, nós é que tínhamos de ir ter com elas. Um dos nossos segredos é esta adaptabilidade. Na direção do GRACE só estão empresas, por isso compreendemos a linguagem do mundo empresarial. Não existimos para ser um think tank, sem desprimor para quem faz isso. O GRACE é uma organização hands on – se for preciso sujar as mãos, calçar botas, galochas, está tudo bem.

Li uma frase que achei espectacular: ‘As quotas são como os aparelhos dentários, ficam muito mal, mas corrigem.’ Não é uma coisa bonita, mas corrige. E comecei a olhar para a lei das quotas [para mulheres nos conselhos de administração] de outra maneira.

A União Europeia está a implementar novas diretivas que obrigam as empresas a reportar os seus relatórios de sustentabilidade através do enquadramento ESG (Environmental, Social and Corporate Governance). No dia a dia, esta legislação ajuda de facto à transformação?

Fica muitíssimo mais difícil aquilo a que se chama greenwashing ou socialwashing, que é as empresas dizerem que estão a fazer uma coisa espectacular, e estarem a fazer outra. Às vezes as empresas fazem cherry picking nos seus relatórios: contam a parte da história bonita, e esquecem-se de contar a outra parte, porque não são obrigadas a fazer isso.

Mas até agora só as grandes empresas é que terão de reportar, sendo que 99% do tecido empresarial é composto por pequenas e médias empresas (PME)…

Eu costumo dizer que isso é um mito urbano. Qualquer grande empresa trabalha com PME na sua cadeia de valor, e as empresas estão agora vinculadas a atingir determinadas metas de emissões carbónicas. Se uma empresa faz o chamado Pledge Net Zero, de atingir a neutralidade carbónica em 2045, por exemplo, eu não consigo fazer isso sem arrastar as PME que estão na minha cadeia de valor, porque se elas não fizerem essa jornada, eu não consigo cumprir o meu compromisso. Agora, imagina o que é para uma EDP, uma Delta, uma Vodafone. Essas empresas têm uma reputação tal que vão forçar as PME na sua cadeia de fornecimento. Dizer que isto é só para as grandes empresas, pode ser verdade do lado da compliance, mas não é verdade do lado da realidade do mercado. E, no final do dia, o tema da sustentabilidade é um tema de competitividade, não de compliance. As empresas devem fazer esta jornada porque as torna mais competitivas. E as que não fizerem são as que vão ficar para trás.

Outro tema são os progressos que temos feito quando falamos em diversidade de inclusão. As quotas ajudam a acelerar o processo, mas como se muda a cultura e a mentalidade?

Mais uma vez, acho que é pelo tema da competitividade. As empresas só conseguem dedicar verdadeira atenção ao que é importante para o negócio. Durante muito tempo fui contra a lei das quotas. Odiava que alguém pensasse que eu tinha chegado a sócia da VdA por causa de uma quota. Tal era a minha arrogância.

O que mudou?

Li uma frase que achei espectacular: “As quotas são como os aparelhos dentários, ficam muito mal, mas corrigem.” Não é uma coisa bonita, mas corrige. E comecei a olhar para a lei das quotas [nos conselhos de administração] de outra maneira. Há estudos que demonstram que há um dividendo real da diversidade, é bom para o negócio, as empresas são mais lucrativas. Ou seja, tem impacto em métricas, KPI (Key Performance Indicator, indicador–chave de desempenho) que toda a gente mede, os EBITDA da vida (lucro de uma empresa antes de juros, impostos, depreciação e amortização), as rentabilidades. É um tema também de sustentabilidade, porque quanto mais lucrativa for, mais anos cá estarei. E com essa conversa é mais fácil fazer a progressão do tema da diversidade.

O tema da sustentabilidade é um tema de competitividade, e as empresas que investirem nisso são as que vão cá estar no futuro. Se tu fores próspero, podes ser um bocadinho menos lucrativo durante dois ou três anos, mas estarás cá mais 100 ou 50.

O que te levou a criar, em 2018, o programa Women Boards, direcionado para mulheres em cargos de topo nas empresas ou que aspiram a tal?

Estava numa reunião, tinha saído a lei das quotas, que começava a aplicar-se em 2018, e li um comentário negativo de alguém conhecido do mundo empresarial, dizendo que não há mulheres suficientemente preparadas para todas as cotadas, que ia ser um drama. Pensei: “Como assim, não há?” Se o problema é esse, então a VdA Academia vai preparar mulheres para integrarem boards. Aliás, não sei quem uma vez disse que a igualdade de género só será atingida quando houver mulheres incompetentes em lugares de liderança.

Não sei se foi o próprio Presidente da República…

Exato. Foi assim que surgiu. Fiquei irritada, disse: “Então vamos fazer.” O programa nasceu e ultrapassou todas as expectativas. Nós, neste momento, temos uma lista de espera… Já fizemos oito edições. E não só em Lisboa, como também no Porto, em Luanda e em Maputo.

A lei, hoje em dia, diz que tem de haver um número mínimo de mulheres…

Mas podem ser executivas ou não executivas.

E muitas são não executivas.

O primeiro grande estudo que o ISEG fez, que se chama justamente “Women on Boards”, demonstra que as empresas estão a tentar fugir, entre aspas, ao “old boys club”, integrando mulheres em cargos não executivos e não tanto em executivos. Perguntas-me: “É o ideal?” Não é, mas não faz mal. Acho que a partir do momento que uma comissão executiva 100% masculina tem de se reunir uma vez por mês, havendo um board com um terço de mulheres, começam a perceber que elas não são nem jarras que entram mudas e saem caladas, nem bichos que mordem e estragam tudo. É uma boa transição, e no próximo mandato já deixamos uma destas senhoras entrar para um lugar com funções executivas. Na Europa, Portugal está na vanguarda em termos de lei das quotas. Temos de estar orgulhosos nessa matéria.

Disseste recentemente que só quem for sustentável vai retirar os benefícios e manter-se competitivo no futuro. Mas como é que competimos de forma justa num mundo global que não se rege pelos mesmos padrões?

Começando pela primeira parte dessa citação – já vi que andas a ler o que eu digo.

Claro.

A primeira parte vai ser especialmente difícil para as empresas portuguesas. Primeiro, porque está a ser-lhes pedido que façam isso quando estão a sair de uma pandemia, entraram numa guerra, a inflação disparou, os juros subiram. O contexto é, no mínimo, desafiante, mas aí é desafiante para o mundo inteiro. Vai ser mais difícil para as empresas europeias, porque a União Europeia decidiu assumir-se como líder nesta matéria, foi o primeiro continente que decidiu atingir a neutralidade climática em 2050. A lei do clima é uma lei, não é um Acordo de Paris, que é um acordo de cavalheiros que nem sempre se comportam como cavalheiros. Estou absolutamente convencida, e acho que é esse o drive da Europa, que o tema da sustentabilidade é de tal forma um tema de competitividade, que as empresas que fizerem isso são as que vão cá estar no futuro. Se tu fores próspero, podes ser um bocadinho menos lucrativo durante dois ou três anos, mas estarás cá mais 100 ou 50. Este é o melhor trade off, e este combate é o da prosperidade, não é do lucro de curto prazo. Numa corrida de longo prazo, numa maratona, acho que a Europa vai sair vencedora. Há algumas empresas na Europa que são verdadeiros exemplos de sustentabilidade e de prosperidade. Dou-te o exemplo da Ikea, uma empresa que nem é associada do GRACE…

Podes falar da Delta, também.

Quando é para dar um exemplo em Portugal, dou sempre o da Delta. A Delta já nasceu com isto, só que não se chamava ESG (Environmental, Social and Corporate Governance), chamava-se senhor Rui Nabeiro. Uma vez fui à Delta e lembro-me de toda a gente falar do senhor Rui de uma forma que não se explica. Isso é o que qualquer empresa quer – ver o engagement dos colaboradores. Mas, voltando ao exemplo anterior, a Ikea não aceita ter fornecedores que não façam uma trajetória de sustentabilidade. A Ikea chega a financiar os fornecedores para comprarem o tal equipamento que é preciso para reduzir em 90% o consumo de água, mas depois vai lá auditar e ver se é mesmo verdade. Acho que é uma boa prova de como ser próspero e ser lucrativo não são bem a mesma coisa. Essa é a grande mensagem. É uma corrida de fundo, não é um sprint.

O que é um dia bom para ti?

Um dia bom para mim é um dia em que senti que qualquer coisa que fiz deixou uma semente algures, num sítio qualquer. E é curioso, às vezes sentes isso, e só passado um ano é que percebes que era mesmo uma semente, e que aquela semente se tornou noutra coisa.

Qual é o legado que gostavas de deixar à sociedade e à tua família?

Gostava de deixar um legado de integridade e decência. Acho que se fores íntegro e decente, para contigo e para com os outros, mais de metade do caminho está percorrido. O meu pai dizia-me, quando era pequena, que os filhos são o único investimento de retorno garantido. Não tenho a certeza de que isso hoje seja tão verdade assim. Acho que ser mãe ou ser pai nos torna reféns, e a capacidade que eles têm de nos infligir sofrimento é ilimitada. Mas se houver integridade e decência, o retorno é quase garantido.