O pintor modernista português Amadeo de Souza-Cardoso morreu prematuramente, apenas com 30 anos, em 1918, vítima da gripe pneumónica, ou “gripe espanhola”, como ficou conhecida. E se há alguma coisa que pesa em “Amadeo”, o filme de Vicente Alves do Ó sobre o artista, é precisamente o fantasma desta doença. A parte final da fita é toda ela preenchida, longa, soturna e arrastadamente, com os padecimentos dos familiares de Amadeo quando foram atingidos pela pneumónica na casa de praia que tinham em Espinho, ao som de um sino que toca a finados e que acaba por se tornar tão insistente e repetitivo como o sofrimento das personagens.

Ao contrário dos dois filmes anteriores de Alves do Ó dedicados a artistas portugueses, “Florbela” (2012), sobre Florbela Espanca, e “Al Berto” (2017), que conta a história do poeta Al Berto até ter rumado a Lisboa, “Amadeo” tem pouco de concreto a dizer sobre o seu biografado. Além da agitada vida pessoal e sentimental da autora de “Charneca em Flor”, “Florbela” falava do conflito entre o apelo da escrita e a vontade que ela tinha de viver uma vida segundo os padrões da sociedade da época; e “Al Berto” desvendava a existência do poeta e pintor antes de instalar na capital, e se tornar conhecido no seu meio cultural, literário e boémio. “Amadeo” é restrito na vida e parco de informação e decifração. Se não se pedia propriamente didatismo escolar, coca-bichinhice biográfica ou dissertação teórica, que houvesse ao menos um arrimo narrativo ou um ponto de vista percetível sobre Amadeo de Souza-Cardoso e a sua obra.

[Veja o “trailer” de “Amadeo”:]

O filme é muito limitado no plano temporal. Começa nos anos finais da vida de Amadeo (Rafael Morais), quando o eclodir da I Guerra Mundial o afastou e à mulher, Lucie (Ana Lopes), de uma Paris cosmopolita e culturalmente vibrante, e os confinou à casa da família em Manhufe (Amarante). Há “flashbacks” para os anos do início do século XX em que ele se instalou na capital francesa, se relacionou com o casal Delaunay e conheceu e conviveu com alguns dos maiores nomes das artes dessa época, e fecha com a morte do artista, de pneumónica. Mas é quase tudo difuso, solto e episódico, com muito pouco de pormenorizado, cativante ou interpretativo sobre a vida de Amadeo, as suas contradições, a relação com os artistas seus contemporâneos, as suas opiniões estéticas e a sua pintura. O casamento feliz com Lucie é das poucas coisas bem definidas da fita.

Falta-nos aqui o Amadeo que gostava de touradas e de ir à caça; o Amadeo monárquico férreo, politicamente conservador e ligado ao Integralismo Lusitano, mas esteticamente vanguardista e que nunca se integrou em qualquer escola ou movimento artístico; o Amadeo que em vida conseguiu ter mais projeção internacional do que no seu país, expondo, por exemplo, no célebre Armory Show de Nova Iorque em 1913, a primeira grande mostra de arte moderna realizada nos EUA; ou o Amadeo que, em Lisboa, conviveu intensamente com gente do “Orpheu” e do “Portugal Futurista”, caso de Almada Negreiros. Quem for ver o filme para o conhecer melhor, sai quase como entrou e mais vale ir à procura de um completo documentário sobre o pintor que a RTP exibiu em 2016, “Amadeo, o Último Segredo da Arte Moderna”, do luso-francês Christophe Fonseca, que não se põe com reticências, ambiguidades ou “mistérios” a respeito dele.

Vicente Alves do Ó tem um elenco coeso e capaz (este foi o último filme de Eunice Muñoz e Rogério Samora, que fazem, respetivamente, de avó e de pai de Amadeo), tem paisagens (Sintra passa bem por Amarante), tem uma diligente recriação de época (e sobretudo do ambiente de trabalho do artista e das suas pinturas) e boa execução cinematográfica (destaque para a fotografia de Rui Poças). Mas “Amadeo” pedia mais informação, mais contextualização no seu tempo e no meio abastado e tradicional a que o artista pertencia mas com o qual também contrastava, e sobretudo de um olhar mais nítido, mais objetivo e detalhado sobre a figura e a personalidade de Amadeo de Souza-Cardoso e a obra que deixou. E de menos, muito menos gripe espanhola.

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