O musical “Amália, Dona de Si”, agendado para domingo, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, mostra os lados público e privado da cantora e fadista considerada a voz de Portugal, disse o encenador e dramaturgo Jaime Monsanto.

Misto de teatro, concerto e espetáculo de dança, o musical é produzido pela Academia de Música de Coimbra (ADC) e o Conservatório An-Dança, de Vila Nova de Famalicão. Estreou-se no Centro de Artes e Espetáculos (CAE) da Figueira da Foz em dezembro de 2021, voou para São Paulo, no Brasil, com três apresentações no Circuito de Teatro em Português, em dezembro do ano passado e, com chancela da Fundação Amália Rodrigues, chega no próximo domingo ao Coliseu dos Recreios.

Em conversa com a agência Lusa, o elenco de “Amália, Dona de Si” observou que o novo musical partiu de um sonho do cantor e ator Diogo Carvalho, ao qual foi acrescentado dramaturgia, revisitados instrumentos musicais e adicionados outros, culminando num espetáculo biográfico sobre a vida e o legado de Amália Rodrigues.

“Estamos no Coliseu dos Recreios, porque a administração da Fundação Amália Rodrigues foi à estreia do espetáculo no CAE. Estavam a tentar perceber quem nós éramos e a quem tinham apoiado e dado o aval para usar o nome de Amália. E ficaram absolutamente encantados com o espetáculo, de tal forma que quando decidiram fazer este fecho das festividades, decidiram-nos chamar para apresentarmos o espetáculo no Coliseu”, disse o encenador Jaime Monsanto à Lusa.

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Sobre a ideia de colocar dramaturgia no musical, revelou que a sua abordagem foi a de pegar em todos os testemunhos deixados por Amália Rodrigues — que morreu em 1999, aos 79 anos –, “entre livros, testemunhos e entrevistas, e tentar organizar um discurso dela, porque ela deixou-o”, observou.

“O espetáculo — e a música ajuda muito — acaba por ser algo que oscila entre este lado público e o lado privado de Amália. Tem estes dois polos de tensão e acaba por ter este dinamismo porque, a todo o momento, entramos numa onda mais pública dela, mais histriónica, mais aberta, mais bem-disposta e, logo a seguir, entramos na sua intimidade”, adiantou Jaime Monsanto.

No Brasil, onde a companhia atuou em três teatros diferentes, “existiu uma coisa muito bonita, muito boa gente, no fim do espetáculo, disse ‘engraçado, esta Amália não sabia que existia, esta não conhecia’. Tem mais a ver com a interioridade dela, que ela também deixou”, vincou o encenador.

O intuito de Diogo Carvalho, autor da ideia, era o de fazer um espetáculo sobre Amália, alguém de quem gosta e admira. Jaime Monsanto acedeu, mas quis “pegar nela, entre aspas, e percebê-la”.

“Depois, no confronto entre a música, porque as canções também contam a sua história, e os testemunhos dela, as pessoas vão, elas próprias, decidir o que querem descobrir a seu respeito. Se querem a artista ou a pessoa privada. E posicionam-se perante aquela figura, evidentemente sem juízos [feitos] pelo encenador”, argumentou.

O projeto — que foi pensado e produzido em plena pandemia de Covid-19 — implicou a organização de toda a informação existente sobre Amália, ao longo de seis meses, ao mesmo tempo que os músicos e o cantor e ator procediam à escolha das canções.

Os integrantes do grupo, “cada um na sua área”, acabariam por se transformar num coletivo “descobridor” de Amália Rodrigues, enfatizou o pianista e diretor geral da AMC, Pedro Ferreira.

Diogo Carvalho, 29 anos, é o protagonista do musical “Amália, Dona de Si”, onde ora interpreta a cantora e fadista e outras personagens (a exemplo dos músicos, que não estão estáticos em palco) ou atua ao lado da sua voz.

Este sonho de homenagear Amália Rodrigues, vindo de quem tinha apenas seis anos quando a cantora morreu e, obviamente, nunca a viu atuar, cresceu em família: “O primeiro musical que fui ver, com a minha avó, foi o ‘Amália’, do Lá Féria e aquilo foi-me fascinando”, recordou.

Agora, depois de a Fundação Amália Rodrigues ter visto o espetáculo, e “reconhecer-lhe qualidade”, Diogo definiu como “absolutamente uma honra” poder “pisar o palco” do Coliseu dos Recreios “que a própria Amália pisou e onde encerrou a sua carreira” em 1994.

Embora admitindo que a apresentação em Lisboa possa ser diferente, da parte do público, dado a cidade capital do país “ter muita gente que vibra Amália e tem a cantora como sua”, o pianista Pedro Ferreira, que é também teclista nos Anaquim, frisou que os elementos que compõem “Amália, Dona de Si” estão todos habituados aos palcos, por participarem, em conjunto, noutros projetos.

“Não conseguimos é estar imunes a este peso de saber que o Coliseu foi o último local onde Amália Rodrigues atuou. Sabemos que existe ainda e, felizmente, uma força muito seguidora de Amália Rodrigues — os chamados ‘amalianos’ — e sabemos que vão estar lá. Mas também estamos confiantes daquilo que temos para fazer”, observou.

Para além dos já referidos, o musical “Amália, Dona de Si” integra os músicos Ricardo Silva (guitarra portuguesa) e Filipe Ferreira (contrabaixo), tem figurinos do centro de formação Cearte, e a participação de bailarinas do conservatório An-Dança, um bailarino do DNA — Dance N’Arts School de Coimbra e a Marcha do Castelo, de Lisboa.

A tecnologia que traz Amália de volta ao palco

É a tecnologia atual que permite que a voz de Amália Rodrigues “regresse” ao palco do Coliseu dos Recreios.

De acordo com os produtores, o espetáculo  que inclui diversos temas em que o principal intérprete e os músicos que o acompanham interagem com a voz de Amália Rodrigues, só é possível com tecnologia que, há uma década, não existia.

“A construção de cada um dos temas tem aqui algo que só a tecnologia nos podia dar. Temos a voz da Amália, que é retirada dos originais, que nós colocamos através de algoritmos em “software” e nos permite tocar ao vivo com a voz. Com os andamentos originais, mas com os instrumentos de hoje”, disse à agência Lusa o pianista Pedro Ferreira.

E isto também nos seduziu. Foi (pegar em algo) tradicional, algo que está na História e trazer algo de novo. Uma nova forma de apresentar a Amália”, acrescentou o também diretor geral da Academia de Música de Coimbra (AMC)

Também dirigente e professor na AMC, Ricardo Costa, o “mago” da componente tecnológica de “Amália, Dona de Si”, onde desempenha funções de técnico de som, explicou o processo: “A tecnologia foi-se desenvolvendo e, agora, conseguimos separar dentro de uma música determinadas frequências respetivas aos instrumentos. Neste caso é a voz da Amália”.

“A Amália não gravava em pistas (com a voz e instrumentos separados). Agora, com o crescimento da tecnologia, é possível fazer esse trabalho. Agora, este processo é relativamente simples e possível de concretizar, há dez anos era impossível”, enfatizou.

E como é cantar com Amália, ao mesmo tempo do que ela, sem Amália estar, fisicamente, em palco? O cantor Diogo Carvalho resumiu a “emoção” de o fazer, mesmo se os ensaios são diferentes de uma apresentação ao vivo do musical.

“Normalmente nos ensaios nada nos toca, mas em palco, estava a cantar o primeiro tema, o “Medo”, e quando entrou a voz dela, instalou-se um ambiente completamente diferente. Mas não é só a mim, quase de certeza absoluta que isso também aconteceu com o público”, resumiu Diogo Carvalho,

“Foi aquela coisa do “uau, estou a fazer isto”. Estou a concretizar um sonho”, destacou.

Musicalmente, “Amália, Dona de Si” é um olhar para a carreira de uma artista “que desconstruiu aquilo que era um bastião chamado fado, aquilo que ela própria ajudou a elevar”, continuou Pedro Ferreira.

É um grande desafio para nós e uma grande missão de responsabilidade passar às gerações atuais, esta capacidade da Amália se afirmar como alicerce e estrutura de algo que é um género musical tão importante para um país. E de como ela conseguiu brincar com ele, trazer-lhe leveza, como foram as canções mais populares, mais tradicionais, mas também pisar os grandes palcos de todo o mundo com uma magnitude que lhe é reconhecida”, argumentou.

O que o novo musical pretendeu fazer “foi, também, de alguma forma, trazer essa desconstrução” para o palco, substituindo a viola por um piano, adicionando um contrabaixo, mas mantendo a guitarra portuguesa.

“Nunca poderíamos tirar a guitarra portuguesa, nem ela o fez, embora tenha havido uma fase em que apareceu um saxofone e outros instrumentos que tiraram o lugar da guitarra portuguesa nos comentários melódicos, o que é interessante. E depois daí, também, as excelentes polémicas que a Amália ia provocando”, notou Pedro Ferreira.

Nessas polémicas, continuou, a própria Amália “tirava as suas conclusões e qual o caminho a seguir”. “E a guitarra portuguesa abraça-a de uma forma incrível”, sublinhou Pedro Ferreira.

Já o guitarrista Ricardo Silva reforçou essa importância da guitarra portuguesa, quer no musical de que faz parte, quer na carreira da cantora e fadista portuguesa.

“A Amália, que viajou pelo mundo inteiro e por diversos estilos, nunca largou a sua raiz, do fado e da guitarra portuguesa. Muitas vezes, até em filmes e espetáculos antigos, estão orquestras enormes em palco a fazer o suporte musical e, à frente, com ela, está sempre uma guitarra portuguesa. Ou duas, neste caso no quarteto de cordas Raul Nery, que a acompanhou durante muitos anos”, lembrou.

“Ela nunca deixou essa vertente fadista e isso, ao mesmo tempo, ajudou a marcar ainda mais a nossa identidade. Ela foi a Cesária Évora da morna, a Edith Piaf em França e nunca deixou essa parte da guitarra. Fazer um espetáculo sobre a Amália teria de ter a guitarra portuguesa, nunca poderia ser de outra maneira”, acrescentou.

Para além da reinterpretação de temas icónicos de Amália Rodrigues, “Amália, Dona de Si” apresenta um tema original, cantado por Diogo Carvalho, que encerra o espetáculo.

“Quando olhamos para a sua história de vida, que está aqui tão bem escrita, musicalmente também tínhamos a missão de trazer algo de novo. Lançamos um original, que se chama “Amália, Pelos Caminhos do Teu Nome”, que quer trazer esses sons de hoje, essa forma também de compor para as gerações mais atuais”, revelou Pedro Ferreira.