Nascida em Sevilha em 1985, Elisa Victoria, autora espanhola, publicou Porn & Pains em 2013 e La sombra de los pinos em 2018. Este Vozdevelha é o seu primeiro romance, a que se seguiu El Evangelio. Além disto, tem textos publicados em vários meios de comunicação e faz oficinas de escrita. Vozdevelha é o seu primeiro livro a ser publicado em Portugal, com selo da D. Quixote. Tendo alguns méritos, tem um defeito que salta à vista do princípio ao fim.

Mas vamos ao enredo. No centro da narrativa, está uma criança. Marina tem nove anos e, na escola, é conhecida por Vozdevelha. Aparentemente, há um grande desfasamento entre si e os da sua idade e é este desfasamento que vai ficando claro para o leitor. É Verão, o calor torra em Sevilha, e ela está naquele limbo entre brincar com bonecas e folhear revistas para adultos. Na sua cabeça, já cogita o que será a vida adulta. E, dentro de casa, cogita ainda o que será o dia seguinte: a mãe está doente, adivinha-se que morra, o seu futuro terá de ser salvaguardado e surge a hipótese de, ficando órfã, ir viver para um internato. É um plano B para a vida e um plano que ganha força: o internato é gerido por freiras e ela lá vai fingindo que tem crenças que não tem, até através de sacramentos. O pai saiu de cena quando ela tinha cinco anos e a melhor amiga é a avó. A influência desta em Marina vai-se notando pela criação dos gostos e dos jeitos, das roupas que leva à escola (antiquadas), das expressões que usa (que fogem da forma de falar de uma criança).

Para o leitor, vai tendo graça o olhar quase cínico de uma criança que, tendo a mãe viva, prepara a vida depois dela. Não é que não haja sensibilidade, mas acima disso há estoicismo, que Elisa Victoria não tratou como redenção. Contra a morte, existe a ideia de sobrevivência, que parece impor-se a qualquer coisa. Marina é apresentada às freiras como se estivesse numa entrevista de emprego, doseando aqui e ali, manipulando o que pode, dando o que querem ver através dela. E, nisso, mostra uma rigidez que, sendo incomum, se mostra necessária – e se mostra, por isso, como única hipótese:

Preciso de causar boa impressão à chefe do convento porque, se não me admitirem, talvez não se saiba o que será de mim. A minha mãe explicou-me isso com delicadeza, mas sem me esconder nada desde o princípio. Está muito doente, suficientemente doente para ter de mo dizer.” (p. 31)

A autora constrói ainda a personagem como obviamente inteligente, o que vai servindo para impulsionar a prosa. Pelo meio, vai pontuando a narrativa com elementos próprios da infância, como uma ingenuidade que chega a ser comovente para quem quiser ser comovido, como o momento em que Marina julga que a tia lhe guarda rancor por não ter gostado de uma prenda que esta lhe oferecera. Até aqui, lê-se sem grandes objecções.

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Título: “Vozdevelha”
Autora: Elisa Victoria
Editora: D. Quixote
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Páginas: 256

O problema é que, ao longo da narrativa, o tom foge. O leitor acompanha uma criança, mas, com demasiada frequência, há uma noção clara de que o que lê é um adulto a fingir que é uma criança. Exemplo:

As coisas não vão mal de todo. O problema está dentro de mim. Passo a maior parte do tempo a disfarçar com todas as minhas forças, a fingir que o que nos rodeia não me irrita até à medula.” (p. 15)

Com nove anos, Marina tem uma consciência que parece pensada a posteriori, o que quebra a linha narrativa e cronológica do romance. Assim, a proposta de ficção cai às portas da plausibilidade. Da mesma forma, quando, parágrafos depois, a personagem diz “Cada vez que falo com alguém a minha voz muda, as minhas mãos suam e noto que o meu disfarce de humano é de má qualidade” (p. 16), pode pensar-se com ironia que o seu disfarce de personagem com menos de uma década de existência também é. O vocabulário, demasiado erudito, por vezes atinge uma sensibilidade considerável e um olhar incisivo, como quando ela vê o cabelo de alguém “a cair-lhe sobre os olhos resignados” (p. 74). E, antes disso, no momento em que é apresentada às freiras, formula um pensamento que, para além de ter erudição (“comedida”, “deliberada”, “beatitude”, “virginal”), exige uma capacidade de pensar o mundo de uma forma demasiado abragente para o mapa mental de uma criança:

A sua voz é ténue, suave e comedida. Ela sabe como pescar um herege, mas eu sou muito hábil na arte de conquistar o inimigo. (…) Se eu mentir de forma deliberada, não irá acreditar em mim. Devo ser o mais sincera possível dentro da descrição, da beatitude virginal de menina.” (p. 34)

Não é que a literatura tenha de ser um espelho da realidade. Antes pelo contrário, a escrita deve ser capaz de criar realidade, ao invés de a reproduzir ipsis verbis. Ainda assim, ao leitor é difícil suspender a crença, não porque tenha de acreditar no que lê, mas porque, página a página, lhe vai sendo claro que a voz narrativa que tem à frente é totalmente inventada, que a voz que ouve não pode ser a da personagem que fala. Talvez a autora se escude na ideia de que Marina fala como alguém com décadas em cima, mas a ideia não basta, uma vez que a opção que tomou queimou a chance: o tom que lhe atribui difere de qualquer possibilidade real narrativa e discursiva. Se um tom mais velho pode ser criado, e até com graça, pondo na voz de uma criança frases como “Deus dá nozes a quem não tem dentes”, a verdade é que criar-lhe um fio condutor discursivo pejado de metáforas, de uma eloquência exagerada, de pensamentos eruditos impossíveis, só serve para macular a leitura passo a passo.

A tarefa a que Elisa Victoria lançou mãos é das mais difíceis em literatura. Inventar uma voz infantil exige muita capacidade técnica, para além de inventiva, e é por isso que quase todas as tentativas falham redondamente. Enquanto a lemos, vemos que também ela falhou. Ao criar-se a voz, há que ter noção da circunscrição possível dessa voz, percebendo-se até onde é possível ir, sem artimanhas que sirvam para justificar o tom e aplacar a estranheza de quem ler. Assim, o nível de erudição de Marina não é justificado com o título do livro nem com a ideia de que tem voz de velha. É que a própria ideia de velhice no seu discurso já bate ao lado em termos de coesão e coerência. Mesmo que a opção fosse essa, o caminho há-de ter sido errado, e Elisa Victoria cedeu no que não podia ter cedido: usou os seus recursos todos – de adulta, de escrita, de alguém que leu – e meteu-os num livro, sem os limar para meter só o que interessava. Isto é o mesmo que dizer que não esculpiu a prosa, criando um texto que, permanentemente, sabe a coisa desfasada.

A autora escreve segundo a antiga ortografia