Sim, nós também estávamos a pensar ver “Stutz”, o documentário de Jonah Hill sobre o seu psiquiatra e os métodos pouco convencionais que usa. Mas, se o que o bom Jonah saiu da terapia capaz de fazer foi isto, se calhar, vamos poupar aquelas duas horas para outra coisa (de quatros episódio de “Curb Your Enthusiasm” a ver a tinta secar nas paredes, há todo um mundo de opções). Ou talvez Phil Stutz tenha feito o seu trabalho bem de mais e capacitado o seu inseguro e ansioso paciente-estrela de que podia escrever uma comédia pretensamente pungente em termos sociais em duas penadas e ainda encarnar o papel principal, enquanto jovem porta-estandarte dos valores de uma nova geração.

O que é que está errado com “Esta Gente”? Bom, tudo começa por aí: pela gente. O que é que está aquela gente toda ali a fazer? Eddie Murphy? Julia Louis-Dreyfus? David Duchovny? E quem, no seu juízo, meteu o seu dinheiro nisto para lhes pagar? Todo o cinema de entretenimento começa por um termo de negociação tacitamente aceite com o espectador: a suspensão da descrença. É-nos pedido, em silêncio, que esqueçamos, por um momento, que não sabemos que aquilo que nos preparamos para ver não é um filme, uma encenação, mas algo real, ou mais do que real: uma história. Mas, para que isso funcione, o filme tem de fazer a sua parte. Porém, não é a descrença que “Essa Gente” nos pede que suspendamos; é o bom-senso. E nove em cada dez dos nossos critérios de exigência.

O filme não cola desde o instante um, em que nos é pedido que acreditemos que Jonah Hill é um “jovem” podcaster (um “jovem” de 35 anos, interpretado por um ator de 39 que parece ter 45), que já só tem uma vaga ideia de quem “foi” Barack Obama – e atenção que, em momento algum, esta personagem nos é vendida como tendo alguma espécie de problema cognitivo, apenas um tangas em relação à história e cultura afroamericanas. O “jovem” branco Ezra faz um podcast com Mo (Sam Jay), a amiga negra e de género razoavelmente indeterminado, em que discutem se brancos e negros alguma vez se poderão entender. Ora, Ezra é filho de Shelley (Julia Louis-Dreyfus) e Arnold (David Duchovny), casal bem-sucedido de judeus por quem parece, etária e fisionomicamente, ter sido tão gerado como o ursinho Puff pelos pinguins de “Madagáscar”.

[o trailer de “Esta Gente”:]

Bom de ver que, em menos de cinco minutos, Ezra já está a conhecer a jovem negra por quem se vai apaixonar e contrariar todas as convicções iniciais, num encontro caído do nada que só não acaba com o que restava de verosimilhança no filme porque nunca chegou propriamente a haver uma (também já entrámos por engano em carros particulares achando que eram um Uber e garantimos que as pessoas não ficam prontamente envolvidas numa grande conversação nem muito menos decidem ir dar um passeio juntas. Ainda por cima, quando ali acresce a tensão da desconfiança de um preconceito racista).

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A “história de amor” entre as duas personagens principais, Ezra e Amira (Laura London), que deveria manter unido todo o filme e ser a força que o faz avançar e garantir que o espectador torce por elas, contra todos os obstáculos, não existe. É despachada em duas linhas de diálogo e logo passa para as “sequências musicadas de felicidade” com que um telefilme dos piores não se atreveria a resolver o que não sabe contar antes de uma púdica primeira meia hora de fita. Limitam-se a passear como dois adolescentes tardios por lojas de ténis de marca, nunca se percebendo o que têm, afinal, de “completamente diferente” das outras pessoas que já conheceram. Acresce o caso grave de Hill e London terem entre eles a química de dois condóminos de andares distantes a quem une o fogo da paixão do entendimento para o arranjo da cobertura do prédio.

Mas o pior vem depois, quando Eddie Murphy entra (em slow motion, o equivalente àquele momento do teatro de revista em que a ação pára para o público aplaudir a estrela que acaba de entrar em cena) e, com ele, toda a questão racial. Enfim, para não nos alongarmos, digamos que tentar fazer humor e dar lições de moral ao mesmo tempo nunca foi receita especialmente recomendável. Mas tentar fazer humor e dar lições de moral misturando holocausto e escravatura é uma forte candidatura ao Prémio IgNobel da década.

“Esta Gente” é, nos seus momentos menos maus, fútil e circunstancial, garantindo, com as suas piadas fáceis sobre ubers, letras de Drake e referências a Joe Rogan, que será completamente datado e descartável em meia dúzia de anos; nos seus piores, tresanda a oportunismo relativamente ao espírito do tempo e à luta pelos direitos civis dos negros americanos. Que um objeto tão superficialmente escrito, de personagens tão pobres ou inexistentes, tenha chegado ao primeiro lugar dos filmes mais vistos da Netflix Portugal ou sequer encontrado um lugar na plataforma a nível global, já não espanta, num ano em que atingimos o absurdo de ver algo como “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, que parece um antigo filme de clube de vídeo restaurado em ácidos, liderar a corrida aos Óscares com 11 – onze, por extenso, para não haver dúvidas – nomeações.

Jonah Hill, que aqui há uns anos fez, com sucesso, o difícil salto de figura de capa da comédia adolescente para ator respeitável (incluindo duas nomeações aos Óscares, uma por “Moneyball” e outra pelo formidável Donnie Azoff, sidekick de DiCaprio em “O Lobo de Wall Street”) e desapareceu a seguir, entre títulos menores e um fracasso televisivo (“Maniac”), é aqui comandante de um naufrágio cuja responsabilidade reparte com Kenya Barris, criador de “Black-ish”, que divide a escrita com Hill e se aventura na realização. A ambos, desejamos um rápido regresso a melhores dias, enquanto esperamos que “Tár” ou “Os Espíritos de Inisherin”, mesmo aí a chegar, ainda salvem o ano ao cinema anglo-saxónico.