Uma vida e uma carreira como a de Ennio Morricone não cabem num documentário de duas horas e meia. Por vias das dúvidas, convém também dizer que não se poderia resumir numa série documental. A questão vai para lá dos números, das mais de 400 bandas-sonoras que compôs ou da centena de peças que escreveu, acompanhadas por dezenas e dezenas de prémios. Morricone viveu um momento único da história da criação popular, o pós-guerra criou um cenário de educação, promoção e aceitação de uma certa aprendizagem e divulgação musical que foi notória — e notável — em alguns dos países que mais sofreram com a Segunda Guerra Mundial (sobretudo na Europa Continental, com França, Alemanha e Itália à cabeça).

Apesar de se ter tornado num querido do grande público, Ennio Morricone, nas boas palavras de James Murphy dos LCD Soundsystem e da DFA, “esteve lá”. Não cabendo tudo em duas horas e meia – nem todos os elogios —, o que tem espaço no documentário de Giuseppe Tornatore (o realizador de “Cinema Paraíso”) é uma história sucinta, relativamente direcionada do ponto A ao ponto B, sobre a vida de Ennio Morricone que permite, para lá da (bem-vinda) bajulação, uma porta de entrada para outros Morricones que se calhar serão menos conhecidos do grande público.

“Ennio, O Maestro” começa então com o próprio Morricone. Uma espécie de último grande documento do compositor/maestro, que morreu em 2020 (o filme estrearia no Festival de Veneza em 2021). Tornatore fala com Ennio Morricone em jeito de grande entrevista, percorrendo a bom ritmo os vários momentos marcantes da vida e carreira do maestro. Arranca com aqueles cinco minutos de hype à volta da figura, numa montagem entre diversos excertos de entrevistas a marcar a importância do visado, intercaladas com Morricone a fazer exercícios no escritório de casa. Dada a duração, funciona como um preparo para o espectador.

[o trailer de “Ennio, O Maestro”:]

Montado com um ritmo saudável, Tornatore vai expondo os vários ilustres que falam de Morricone, seja da influência, da experiência que tiveram com ele ou de um quadro geral com a ideia permanente daquilo que é o mundo, e o mundo cinematográfico, com Morricone: o que mudou, mas também o que o seu legado deixou. As estrelas são muitas, Clint Eastwood, Dario Argento, Quentin Tarantino, Oliver Stone, Barry Levinson, Bernardo Bertolucci, Quincy Jones, Pat Metheny, Marco Belocchio, Bruce Springsteen, Hans Zimmer, entre muitos, muitos outros, incluindo aparições tão rápidas que, por vezes, nem dá para apanhar o nome: como do músico Alessandro Alessandroni.

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Este desfilar de nomes seria de esperar, em parte como muletas para contar uma história, a narrativa de uma vida e de uma carreira. Seria difícil evitar esta tentação, contornar a importância de Morricone sem nomes importantes. E, se por um lado, têm pouco de interessante a acrescentar – por interessante entenda-se “de novo” —, por outro sustentam a história de vida que Tornatore conta através dos vários depoimentos do próprio Morricone.

É por aqui que “Ennio, O Maestro” interessa. Morricone conta uma narrativa da sua vida que acompanha em paralelo a história do século XX (musical, mas não só) — por um lado, a italiana, no pós-guerra; depois, a europeia (pela contradição e oposição às formas mais clássicas da música) e quando o mundo se rende ao seu trabalho.

Se há pouco de novo nesta última parte, a da consagração, o caminho até lá chegar é vistoso e demorado (ainda bem). Morricone fala com emoção de como chegou à música, da relação com o pai e da forma que foi motivado a fazer música. O início é particularmente interessante porque mostra como já de início Morricone andava à volta com as formas, menos preocupado em satisfazer ideias ou conceções de criação. Antes, procurava explorar as dinâmicas do som e da forma como esse som pode ser manipulado.

O capítulo dedicado ao Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza é particularmente útil. Com Franco Evangelisti e Egisto Macchi, Morricone experimentou o jazz, a música concreta, a eletrónica e a improvisação. O grupo nascido em meados dos anos 1960 é a primeira manifestação de uma vontade de mudar que Ennio Morricone sempre alimentou. Acabou por ser este o Morricone menos acarinhado pelo grande público, mas foi este que alcançou liberdade para experimentar e atravessar géneros. Curiosamente, é também nesta altura que começa a sua colaboração com Sergio Leone, no filme “Por Um Punhado de Dólares” (1964).

“Ennio, O Maestro” presta a homenagem possível no formato de documentário com entrevistas. Bem editado, com imagens de época, edifica Morricone como compositor de êxitos pop curioso no início de carreira (coisa que lhe deu muito jeito quando andava a compor para os filmes italianos de Dario Argento e Mario Bava nos 1970s), mas também como figura que ficou popular com as bandas sonoras em filmes de referência. É o feito possível neste formato, para alguns servirá como grande obra de homenagem, para outros um roteiro sobre uma vida e as diferentes épocas que 91 anos obrigam a passar.