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"Velma": um lição brilhante sobre como fazer um 'remake' falhado

Este artigo tem mais de 1 ano

A série de animação sobre uma das personagens de "Scooby Doo" está na HBO Max, mas há muitas razões para não ver. No topo da lista: a fuga às origens e personagens que podem gerar ódio.

Afinal, a série "Velma" é para quem? É progressista ou uma paródia aos progressistas? O resultado é, no mínimo, confuso
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Afinal, a série "Velma" é para quem? É progressista ou uma paródia aos progressistas? O resultado é, no mínimo, confuso

Afinal, a série "Velma" é para quem? É progressista ou uma paródia aos progressistas? O resultado é, no mínimo, confuso

A minha experiência como espectadora de “Velma”, a nova série de animação da HBO Max baseada nos personagens do clássico dos anos 70 “Scooby Doo”, é pautada pela dor. A metafórica e a literal. Metafórica, porque escolhi vê-la à boleia das notícias de que tinha um rating desastroso de 1.3 no agregador-mor IMDB (Internet Movie Database, que reúne todas as séries e filmes já feitos). E literal, porque estava com uma bruta otite, em plena autocomiseração, e precisava de ser entretida com algo que tomasse no máximo meia dúzia dos meus neurónios. Pior que as minhas dores não havia de ser, certo? Bom, mais ou menos.

Primeiro, vamos ao contexto. No ano passado, foi anunciado que o guionista Charlie Grandy, colaborador de longa data da comediante, autora e produtora Mindy Kaling, seria o showrunner de uma espécie de prequela do cão detetive e do seu gang de adolescentes metediços, mas centrado na personagem de Velma e direcionado para adultos. Na altura, a escolha de Mindy para dar voz ao papel principal foi logo polémica e dividiu opiniões, já que levou a que o próprio look da personagem fosse adaptado a alguém do território sul asiático, como a própria Kaling, filha de pais indianos. Apoiada por uns e odiada à partida por outros, a atriz (que é também produtora executiva de “Velma”, apesar de não ser criadora nem guionista) disse há um ano em entrevista a Seth Meyers no seu “Late Night” que toda a celeuma fazia parte lidar com “fãs intensos de desenhos animados com legado”.

A 12 de janeiro deste ano, “Velma” estreou-se na HBO Max e tornou-se na melhor estreia para uma série de animação original daquele serviço de streaming. Kaling partilhou no Twitter a estreia recordista e deixou um agradecimento. Mas a partir daí nada ou pouco se tem referido à temporada. E o motivo pode muito bem ser a hecatombe, de crítica e público, que se seguiu. Numa altura em que o mundo parece constantemente dividido, há que dar este mérito a “Velma”: da esquerda à direita, dos wokes aos incel, dos fãs do original aos que nunca viram um episódio clássico, todos estão em sintonia no ódio às duplas de episódios que saem todas as quintas-feiras. É quase bonito de se ver.

[o trailer de “Velma”:]

O primeiro dos — vários — problemas é o quanto “Velma” se afasta do material original, em circulação desde 1969. Alguns espectadores em fóruns da especialidade levantam mesmo a questão: será que já tinham esta série toda escrita para outro universo e simplesmente adaptaram-na atabalhoadamente ao grupo de Mystery Machine? As personagens são basicamente as mesmas (aqui ainda não há cão, por ser só uma prequela), mas transformadas ao ponto da desfiguração. Continuamos na cidade de Crystal Cove. Mas Velma Dinkey é uma adolescente rancorosa, vingativa, com uma péssima autoestima, que sofre de problemas mentais devido a um trauma com a mãe; Daphne (aqui com voz de Constance Wu, o que tornou também a personagem asiática) é a rapariga popular que esconde uma carreira paralela no tráfico de droga; Fred (Glen Howerton) é o cliché do homem branco privilegiado e infantilizado, aqui constantemente gozado pelo seu pénis diminuto; e Norville (voz de Sam Richardson, o que torna o personagem negro), que virá a ser Shaggy, é um totó maltratado por Velma que está sempre a criticar o consumo de canábis, numa trapalhona piscadela de olho à fama não-oficial que o personagem original estaria sempre sob o efeito de drogas leves. A saga matriz revela-se em pouco mais do que as roupas dos protagonistas, resultando num remake que coloca todo o seu esforço em renegar a sua origem. E valerá a pena, em nome de uma suposta irreverência, perder carácter e até sentido? E quererá o público ver uma série na qual todos os personagens são tão odiosos o tempo todo?

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Em termos de humor, o resultado acaba por ser uma espécie de versão genérica de “Family Guy”. Ora se já nem o estilo de humor do próprio “Family Guy” faz grande sentido em 2023, cheirando a datado do início do milénio, que fará um sucedâneo. Mas, ao contrário da saga de Peter Griffin e família, em “Velma” é suposto termos uma narrativa que suporte toda a temporada, não se podendo ficar pelo gag. Só que nem a história é coesa (Velma tem de descobrir quem anda a assassinar as raparigas mais giras da escola, roubando-lhes o cérebro, enquanto lida com alucinações causadas pelo abandono da mãe), nem as piadas são, 99 por cento das vezes, eficazes. E nem é por não terem graça (umas têm, outras — a maioria — falham), é mesmo pelo quão forçadas e despropositas soam. Como se o brainstorming no grupo de Whatsapp dos guionistas não tivesse passado por qualquer filtro ou melhoramento e tivesse ido assim diretamente para as falas dos personagens.

Outro detalhe que soa demasiado autorreferencial para o bem da fluidez da própria série é a quantidade de momentos meta. Isto sucede com abundância e logo numa das primeiras cenas, que em que personagens femininas discutem como os episódios-piloto têm sempre muito sexo enquanto estão nuas num balneário. Parece metido a martelo? Bom, esse é na verdade o tom geral da série. O modo como aparecem fantasmas, como no original, é forçado (através de alucinações de Velma). O modo como aparecem a expressão Scooby Doo e mesmo o bordão da personagem “Yiekes!” são tão de calçadeira que chega a ser ofensivo. E por aí adiante, com a fluidez de um calhau de granito a tentar dançar ballet.

A questão seguinte é: mas afinal, esta série é para quem? É progressista ou uma paródia aos progressistas? O resultado é, no mínimo, confuso. Por um lado, traz representação a várias raças, mas depois parece metê-las a todos dentro de estereótipos ofensivos. Velma, por exemplo, odeia o próprio corpo e está sempre a queixar-se de ser peluda, algo que contraria a exaltação da mulher não-branca. Além disso, tenta mostra várias orientações sexuais como parece troçar delas (as duas mães de Daphne, por exemplo, estão sempre a ser péssimas encarregadas de educação). Depois, tanto tenta desconstruir preconceitos como faz piadas que troçam de movimentos de ativismo (um dos exemplos que colocou o Twitter num alvoroço foi o quinto, “Candy Woman”, em que Velma diz: “I spit the truth without a filter, like every comedian before #MeToo” — “eu digo a verdade sem filtro, como todos os comediantes antes do movimento Me Too”). A Forbes resume: “uma rara combinação de uma enxurrada de críticas anti-woke, espectadores de esquerda que acham a série simplesmente má, e entusiastas do Scooby-Doo chateados com as mudanças”. Vote em quem votar, tenha o hábito de ver que séries for, “Velma” não é para si.

"Velma" é, nos seus raros melhores momentos, pouco mais que esquecível. A única virtude é o notável trabalho de animação, aqui desamparado por um plot à deriva e por personagens fracos e irritantes

Apesar de não ser a criadora da série, foi mesmo Mindy Kaling a ficar na berlinda. Um utilizador do agregador de críticas Rotten Tomatoes deu uma estrela a “Velma” e escreveu: “As piadas não têm graça, os personagens são cruéis, nojentos e avatares parcamente desenvolvidos da Mindy e de todos os seus traumas. Estou genuinamente preocupado com ela. Ela não deveria ir a um terapeuta?”. No Tik Tok, várias raparigas de ascendência indiana explicam como, repetidamente, as personagens de Mindy (sempre mulheres racializadas com baixa autoestima que são obcecadas por homens brancos), vincam a narrativa de que ser daquele sub-continente as torna menos desejáveis. As mais velhas dizem-se aliviadas por não terem crescido com aquele mau exemplo nos media.

E assim se chega aos tais 1.3 no IMDB. Este desastroso número bate uma série de recordes: pior rating para uma série de animação, pior rating (de longe) para uma série da chancela HBO e uma das piores notas de sempre da plataforma (filmes como o bizarro “Daniel The Wizard” fazem-lhe o favor de ter 1.2; mas no reino das séries apenas a telenovela húngara “Jóban Rosszban” também tem 1.3). Quase 90 por cento das notas dadas pelos milhares de utilizadores foi 1. Como comparação, o filme “Scooby Doo” de 2002, escrito pelo agora big boss da DC James Gunn, tem 5.2. Só que esta péssima nota convive com o facto de “Velma” estar em número 2 em popularidade na mesma plataforma (na lista de conteúdos mais procurados), só suplantado pelo todo-poderoso “The Last Of Us” (que, já agora, tem 9.3). Talvez por isso, e apesar das críticas, o buzz parece estar a ser suficiente para garantir uma segunda temporada, que o site Comic Book diz estar já em desenvolvimento.

“Velma” é odiado pelo público, mas não está melhor com a crítica, que também tem sido impiedosa. A Variety, por exemplo, diz que a série “não consegue arranjar uma razão para existir”. Estará perto da realidade: “Velma” é, nos seus raros melhores momentos, pouco mais que esquecível. A única virtude é o notável trabalho de animação, aqui desamparado por um plot à deriva e por personagens fracos e irritantes. Talvez tenha esboçado um ou dois sorrisos nos seis episódios que vi. Mas, relembro, tinha o bucho cheio de antibióticos.

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