Publicado pela primeira em 1986, O homem sentimental, de Javier Marías, chega-nos agora a Portugal, pela mão da Alfaguara, como habitual, já em publicação póstuma. Marías, já se sabe, é um dos grandes – um dos maiores – e, há 37 anos, não só a semente já lá estava como já era fruto em pleno. Este O homem sentimental não só adivinhava o escritor que aí vinha – simplesmente mostrava o escritor coeso que Marías já era.

O romance, que foi o quinto do autor espanhol, inaugurando a sua fase mais intimista, pega no que aparentava ser transitório para criar uma constelação de personagens, emoções e recalcamentos. A vontade de Marías em ir ao âmago é tanta que lê-lo é, em permanência, ser engolido pela densidade emocional e psicológica que traz, e o ritmo da prosa é a magia do costume.

Com um estilo maximalista, Marías rouba os olhos de quem lê, impõe a sofreguidão da leitura, cria uma sensação constante de mergulho. É difícil ler sem ficar zonzo, sem se sentir a catadupa de vida a acontecer ao mesmo tempo. Cada página parece um sismo, cada romance é um abalo que continua a tremer por muito tempo.

Aqui, temos León de Nápoles, cantor lírico, narrador. Quatro anos antes, cruzara-se com Natalia Manur pela primeira vez, num comboio que fazia a viagem entre Paris e Madrid. Numa carruagem, lá estava ela com Hieronimo Manur, o marido, um abastado banqueiro, e também com Dato, que tinha a tarefa de acompanhar Natalia para todo o lado. Na carruagem, entra também Marías, e o seu olho clínico parte daí para explorar o que aí vem: não só se faz uma rememoração constante do encontro como se vê nascer uma teia de paixões, sempre maculadas pelo conflito moral que o autor espanhol gosta de levar à prosa. Tudo é sangue a pulsar, expectativa em estado bruto.

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Em poucos dias, León torna-se inseparável de Dato e Natalia, que assistem aos ensaios da ópera “Otelo”, de Verdi. León fará de Cássio, e o substrato está logo ali: na tragédia de Shakespeare, Cássio desencadeia o ciúme de Otelo. A obsessão de León com Natália também não fica despercebida muito tempo, e Hieronimo Manur entra em cena não só para lhe dar conta de que sabe como para lhe explicar os contornos da relação com Natalia, e tudo o que faz para a preservar de ataques, que aqui significam o interesse de outros homens.


Título: “O homem sentimental”
Autor: Javier Marías
Editora: Alfaguara
Tradução: Salvato Teles de Menezes

Páginas: 144

Marías não perde muito tempo a apresentar as personagens. De repente, mete o leitor em cena com elas – e dentro delas –, transformando o jogo de leitura numa relação dialógica directa e emocional. Assim, o leitor não chega a ver a partir de fora um quadro completo, antes é sugado por ele, colocado no centro da melancolia, da memória, da vergonha, de tudo o que dominar as personagens. Nisto, o ritmo do enredo, para além do da prosa, também está trabalhado de forma a que leitura se impulsione, viciando, já que aumenta de página para página.

As relações criam-se, e vale tanto o dito quando o não-dito. O leitor vê o mundo pelo olho de León, e o que o surpreende surpreende-nos também. Conseguir este impacto sem dar as cartas à partida, manipulando o leitor com aparente facilidade, num jogo de doseamento impossível para a maior parte das mãos que escrevem, já é coisa habitual em Marías, e pelos vistos já em 1986 era a finta preferida. Em 2023, já é clichê referir a mestria técnica do autor espanhol, mas como falar da sua prosa sem o dizer mais uma vez? Marías é o mestre do impacto.

O jorro discursivo de que se faz o pensamento de León, que narra, vai sendo o fio condutor para a densidade psicológica de tudo. Quando León se envergonha, o leitor envergonha-se com ele, apanhado em falso. Quando se entedia da vida de hotel em hotel, de ópera em ópera, numa sucessão de luxos estéreis, também o leitor mergulha no vazio que sustenta o glamour. Natalia implica a fuga ao torpo emocional, e a paixão aparece como stress, que por sua vez aparece como vício a ser alimentado.

É o rodopio nisto que ocupa a maior parte do romance, e o narrador funciona, por isso, como eixo central da narrativa, a partir do qual os fios de enredo se unem, possibilitam e concretizam. A personagem de Dato acaba por funcionar de forma periférica, pontilhando a prosa sem lhe acrescentar muito, e Manur serve para pouco mais do que potenciar o ciúme e o desconforto. Ainda assim, este último vive na prosa de forma a possibilitar uma visão caleidoscópica de vidas que são vistas a acontecer ao longe, mostrando o cinzentismo do que aparenta ser a preto e branco.

Perante o súbito surgimento da paixão de Léon, temos um casamento erigido pelo tempo e por uma ligação de poder: aí, há um lugar emocional em que a paixão existe como hipótese ou esperança. Hieronimo, que tudo paga, até pode comprar uma mulher, mas não o seu afecto. O amor como esperança imaterial refulge num romance em que os vários corpos da paixão vão dar ao mesmo lado.

Não sendo o maior dos romances de Marías – o que é difícil, dados os monumentos que criou depois de 1986 –, O homem sentimental já tem os principais atributos de um escritor que morreu em 2022 tendo dado tudo e tendo ainda tudo para dar. Lê-lo de forma póstuma sabe a bónus, e um bónus que tem já toda a surpresa a que o autor espanhol habituou os leitores permanentemente, sem nunca deixar de ser surpresa.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia