Em março do ano passado, um pivot da CNN portuguesa lançou uma reportagem sobre um grupo de alunos que se juntou para cantar o tema “Imagine”, em solidariedade com as vítimas da guerra na Ucrânia. Ao fazê-lo, disse com toda a convicção que o tema era de Elton John. Depois, emendou para um bizarro José Cid. No fim, lá disse que era do John Lennon. As imagens foram virais, encetando mais um curtíssimo e atabalhoado debate nas redes sociais sobre como muitas das pessoas supostamente credíveis da nossa informação são pródigas em meter a pata na poça, disfarçando como podem com a sobriedade da pose e das palavras. Não sei se os criadores da personagem Philomena Cunk, apresentadora/repórter com o QI de uma malga de tremoços e protagonista da série de pseudodocumentários “Cunk On Earth” (que estreou em 2022 na BBC e chega agora a outras partes do mundo via Netflix) tinham esta crítica em vista. Mas a ideia fica: andaremos a ser enganados por jornalistas que afinal não percebem nada da poda?

Philomena Cunk é a cicerone desta série que repete (mas apura com perfecionismo) o conceito de mockumentary, que pode ser traduzido por mocumentário ou pseudodocumentário. É um estilo humorístico com alicerces na paródia e na sátira, no qual as opções estéticas (escolha de planos, depoimentos diretos para a câmara, entrevistas) fazem parecer um documentário, mas na verdade trata-se de uma peça de comédia, apenas com a aura de “será que isto aconteceu mesmo?”. No caso de “Cunk On Earth”, a dúvida mais repetida pelos espectadores é “será que os especialistas entrevistados por aquela louca sabiam ao que iam?”.

Há grandes nomes do conhecimento, da História à Antropologia, e nenhum deles se desmonta perante a infantilidade mascarada de profissionalismo de Cunk, nem quando esta pergunta “It was so long ago. Why should I care?” (“foi há tanto tempo. Porque é que me devo ralar?”). Nenhum tenta fazer as suas próprias graçolas ou roubar o protagonismo, limitam-se à classe da ciência e do conhecimento. A resposta à dúvida do espectador é, portanto, simples: ótima pré-produção e ótima edição de imagem. O que faz dos 5 episódios de “Cunk On Earth” uma pequena pedra preciosa (e uma das poucas razões atuais para manter subscrição na Netflix) é a atenção ao detalhe, que repetidamente coloca o produto no lado certo da linha ténue entre o estúpido e o divertido, o palerma e o brilhante.

[o trailer de “O Nosso Mundo Segundo Philomena Cunk”:]

Apesar de apenas agora estar a conhecer fama planetária, Philomena Cunk já existe há uma década. Brilhantemente desempenhada por Diane Morgan, uma das melhores atrizes de comédia britânicas da atualidade (podem também vê em “After Life”, com Ricky Gervais, na Netflix; e na ótima “Motherland”, disponível na HBO), a personagem surgia regularmente como entrevistadora imbecil no programa “Charlie Brooker’s Weekly Wipe”, um programa semanal de comentários a cultura pop e entretenimento que durou de 2013 a 2015. E se o nome Charlie Brooker lhe diz alguma coisa, é natural. Brooker, que muitos conhecem como o criador da popular série de antologia “Black Mirror”, começou a ser um nome respeitado no meio com as suas certeiras, acutilantes e por (muitas) vezes cruéis críticas de televisão para meios de comunicação britânicos. A sua página no Guardian chamava-se “His Screen Burn” e teve tal sucesso que deu azo a livros e programas na BBC. Reza a lenda, aliás, que Brooker terá criado a série de ficção científica de sucesso da Netflix após ter ouvido inúmeras vezes a boca “então se és tão crítico do trabalho dos outros, vê lá se tu fazes melhor”.

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Philomena Cunk é, então, mais uma das criações da pena aguçada deste guionista. Depois do sucesso da personagem num programa mais vasto, sucederam-se programas em nome próprio, como “Cunk On Shakespeare” (2016); “Cunk on Britain” (2016-2018); “Cunk & Other Humans on 2019” (com o subtítulo “Politics Returns As The Humans Look At The Historic December General Election”, um especial sobre as eleições que viriam a ser ganhas por Boris Johnson) e agora “Cunk On Earth”, mais debruçado na História da Humanidade, da pré-História aos tempos presentes. Antes da estreia na Netflix, vários excertos do programa circularam pelo Tik Tok, Instagram e Twitter, contribuindo de modo decisivo para o burburinho em torno da série. Philomena começava a tornar-se numa estrela, ainda envolta num certo manto de mistério e dúvida sobre que percentagem de tudo aquilo seria real.

Philomena Cunk é 100 por cento inventada, se bem que reconhecemos nos seus tiques figuras como o incontornável David Attenborough. A chancela da BBC e o blazer quadriculado de padrão clássico ajudam a compor o ramalhete, assim como a cara sempre séria de Philomena fala com o espectador e com os entrevistados. É o chamado estilo humorístico “deadpan”, uma forma de humor deliberadamente apresentada sem variação de linguagem corporal e de emoção para contrastar com o ridículo do assunto, que podemos traduzir por algo como “cara de pau”.

Mas se o estilo de representação de Diane Morgan não é menos do que impecável, a qualidade do texto — mesmo que, a espaços, seja possível reconhecer que recorre a uma mão cheia de fórmulas, como a comparação com a atualidade ou a enumeração que descamba na parvoíce — é também de destacar. Brooker e a sua equipa de guionista deambulam num tango entre o erudito e o pé-de-chinelo, entre a alta cultura geral e a menção desbragada a rabos. Vai do Doutorado à criança de 5 anos com uma classe e lógica que se devem a ser uma série que sabe exatamente que tom e que ritmo melhor lhes convém. Vai da Mesopotâmia a uma obsessão com “Pump The Jam” —  êxito eurotrash de 1993 dos Technotronic, que interrompe vários episódios, com direito ao videoclip original.

“Cunk On Earth” é, a espaços, de facto didático. Mas cuidado: não serve para estudar para um teste de História, lembrando mais aqueles livros muito em voga nos anos 80 da “História de Portugal em Disparates” (com resposta idiotas de alunos). A série nunca se esquece de ter graça, porque nunca fica demasiado apaixonada pela erudição dos temas que dribla com tanta facilidade. Uma raridade, portanto.