A ocorrência de dezenas de mortes nos atuais protestos no Peru é imperdoável e não deve ficar impune, e o Congresso também deve ser responsabilizado pela atual crise, disse em entrevista à Lusa o ex-primeiro-ministro peruano Pedro Cateriano.

É imperdoável que em democracia tenham ocorrido tantos mortos como se registaram agora no Peru. É claro. E essas mortes não devem ficar impunes, têm de ser investigadas e o ministério público, a procuradoria, está a fazer as suas investigações”, indicou o advogado e político peruano, 64 anos, que ocupou o cargo de primeiro-ministro nos governos dos ex-presidentes Olanta Humala, entre 04 de abril e 28 de julho de 2016, e Martín Vizcarra, entre 15 de julho a 06 de agosto de 2020.

Os protestos no Peru contra o Governo da Presidente Dina Boluarte cumpriram na terça-feira dois meses, com um balanço de 58 mortos na repressão pelas forças policiais e militares, para além de centenas de feridos e detidos. Ocorreu ainda a morte de um polícia, executado pelos manifestantes.

Boluarte, ex-ministra e ex-vice-presidente, substituiu o antigo presidente Pedro Castillo, destituído e preso em 07 de dezembro passado após uma tentativa de dissolver o Congresso e governar por decreto.

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Os manifestantes exigem a demissão da atual chefe de Estado, a libertação de Castillo, a antecipação das eleições, a dissolução do parlamento e a convocação de uma assembleia constituinte.

Creio que a estratégia inicial da presidente [Boluarte] foi má, a sua pouca perícia, dizer que ia ficar até 2026, e dois dias depois defender a antecipação das eleições gerais e enviar um projeto ao Congresso”, defendeu.

Um “vazio de poder” que diz ter sido aproveitado pelos seus adversários para gerar “este caos”, defende Cateriano, um dos intervenientes no Fórum La Toja, presidido por Josep Pique, ex-chefe da diplomacia do antigo primeiro-ministro conservador espanhol José María Aznar, e que esta quarta-feira organiza uma manhã de debates na Fundação Calouste Gulbenkian, com encerramento previsto pelo primeiro-ministro António Costa e pela ministra da Defesa de Espanha, Margarita Robles.

Cateriano aponta que “ao lado dos protestos justos, também houve atos violentos”: “queimaram um polícia, não é um ato de humanidade” e “esta situação foi exacerbada pelo Governo, é claro”.

O político liberal de centro-direita, e que esta quarta-feira intervém no painel “Uma nova Ibero-América e uma nova relação transatlântica”, insiste que os problemas do Peru “não se resolvem com atos de violência”, recorda a “terrível e triste experiência do Sendero Luminoso e do MRTA” e que demonstraram “que com a violência se agravam os problemas”, numa referência à violenta guerrilha maoista e ao grupo revolucionário guevarista ativos no país nas décadas de 1980 e 1990.

No entanto, Pedro Cateriano também considera que o atual Congresso (parlamento) dominado por forças políticas de centro e de direita, e sempre hostil a Castillo, também é “corresponsável” pela atual crise.

O parlamento privilegiou os seus interesses partidários, pessoais, e deixou de lado os problemas nacionais. Por essa razão o parlamento é repudiado popularmente e isso reflete-se nas sondagens”, admite.

Faz ouvidos de surdo e não promove um autêntico debate para encontrar uma via, e essa é a atual e dramática situação. Uma cumplicidade na crise por parte do Governo e do parlamento, ambos são responsáveis da atual situação”, adiantou.

No entanto, também recorda que diversos “antigos camaradas da presidente Dina Boluarte” se converteram rapidamente em ferozes adversários, com o lema ‘Dina assassina’.

Mas Dina Boluarte foi ministra de Castillo [antes de ser vice-presidente] com a pasta do Desenvolvimento e Inclusão Social, durante todo o tempo em que Castillo cometeu uma série de violações da lei e ilegalidades. E manteve-se em silêncio, durante um ano e meio legitimou Castillo”, sugere.

“Por isso dizem que é traidora, mas Boluarte afasta-se de Castillo quando Castillo dá o golpe. Mas antes do golpe era aliada e diria que quase encobridora da atuação do então presidente”, assinala o líder do recém-formado partido Liberdade Popular, de centro-direita e em processo de legalização para participar nas próximas eleições gerais.

Mas há um setor do Congresso que nem quer as eleições para 2024. E um setor da esquerda que também não quer, porque o principal objetivo é forçar a renúncia de Dina Boluarte. De acordo com a Constituição do Peru, se o presidente renuncia e não há sucessor, a presidência é assumida pelo presidente do Congresso, que convoca de imediato eleições”.

Um objetivo que diz constituir a estratégia da “esquerda radical” que apoia Castillo, e que aponta para a eleição de uma assembleia constituinte.

Os problemas de um país não se resolvem quebrando a ordem constitucional. Resolvem-se cumprindo a Constituição. Se a esquerda radical pretende quebrar a ordem constitucional, tem de confrontar-se com isso”, frisou.

O político liberal admite que nos amplos protestos que têm abalado o Peru, também existem “justas reivindicações”.

As manifestações não são apenas para uma defesa política de Castillo. Também há justas reivindicações. Por exemplo, há zonas do Peru que não têm água potável. Em cobertura de água potável apenas estamos à frente da República Dominicana e Haiti… Países com menos desenvolvimento económico têm isso, é uma reivindicação justa”.

E denota a “curiosidade” de serem essas regiões sul do Peru, “aquelas que foram fundamentalmente governadas pela esquerda e que defendem 50 empresas públicas, porque o Peru tem 50 empresas públicas de fornecimento de água. Na maioria inativas, manipuladas politicamente, e essas são as consequências”.

Mas sem dúvida que há reivindicações justas na saúde, educação, habitação“, assinala.

Sobre o curto mandato de Pedro Castillo, de origem ameríndia, que se prolongou por apenas um ano e meio e assinalado por diversas acusações de corrupção, muitas ainda por provar, Cateriano mostra-se implacável.

Sabíamos que era uma pessoa sem nenhuma trajetória política, sem experiência de governo, sem uma grande preparação”, indicou numa referência à segunda volta das presidenciais em junho de 2021 que o elegeu com 50,13% dos votos, contra 49,87 para a candidata da extrema-direita Keiko Fujimori, num país profundamente fraturado.

Foram eleições democráticas, foi apoiado por um partido marxista-leninista e previa-se uma situação complicada para o país”, prosseguiu.

Mas não imaginámos a magnitude da calamidade, que este senhor atraiçoasse a democracia no país e que promovesse um golpe de Estado que felizmente fracassou. E que nos levou a esta situação que afeta gravemente a nossa débil democracia”, concluiu.