Sofia candidatou-se ao programa +CO3SO em março de 2021. O objetivo era conseguir os fundos necessários para criar um negócio em nome próprio — uma empresa de consultoria/formação em comunicação. Quase dois anos depois, já em janeiro de 2023, recebeu em casa a carta da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT), a confirmar que o processo de candidatura ia ser extinto. Sofia é uma das poucas empresárias que teve resposta, depois de meses e meses de contactos infrutíferos com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). O desabafo que faz ao Observador é, por isso, acompanhado de indignação.

“Quem lê esta carta pensa que nós incumprimos, que não queremos mostrar transparência nas contas, que somos ilegais. É a sensação que fica da forma como as CCDR esclarecem uma embrulhada que dura há dois anos”, lamenta.

Ao todo são perto de 30 empresários, de norte a sul do país, que Sofia conhece nesta situação. Os contactados pelo Observador fazem um relato semelhante da experiência que tiveram — e continuam a ter — com as CCDR desde 2021. Todos viram aprovadas as candidaturas, assinaram contrato e receberam o primeiro pagamento. Alguns meses mais tarde começaram os contratempos.

Financiado pelo Fundo Social Europeu, o programa +CO3SO é descrito como “um conjunto de programas transversais, que incluem apoios dirigidos à criação do próprio emprego ou empresa por desempregados ou inativos que pretendam voltar ao mercado de trabalho”. O apoio, atribuído ao longo de 36 meses sob a forma de subvenção a fundo perdido, comparticipa 100% dos custos com os postos de trabalho criados no âmbito do programa, bem como despesas contributivas.

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“Na altura pareceu-me tudo um sonho cor-de-rosa”, admite um outro beneficiário do programa ao Observador, acrescentando que “fiquei muito contente quando o projeto foi aprovado. Não sabia que vinha a seguir uma carga de trabalhos”.

As dificuldades foram apenas vividas pelos candidatos que se estabeleceram como Empresário em Nome Individual (ENI) e que, na prática, com a candidatura aprovada, passaram a ser em simultâneo patrões e empregados do negócio que criaram com recurso a este apoio. A cronologia e as especificidades do processo variam de caso para caso, mas seguem um padrão. Os ENI candidataram-se ao programa +CO3SO, tiveram aprovação das CCDR e deram início aos projetos na primeira metade de 2021. Quase um ano mais tarde, já depois de terem recebido a primeira tranche de pagamento e submetido os primeiros pedidos de reembolso de despesas, foram informados de que as regras tinham mudado e que, afinal, teriam de proceder a alterações para continuarem a ser beneficiários do programa.

Praticamente todas as pessoas que submeteram candidaturas como ENI tiveram problemas com a candidatura. Porque eles começaram a mudar as regras”, adianta uma das empresárias. Já depois de assinados os contratos, as CCDR começaram a pedir o reembolso dos adiantamentos feitos, a anular programas ou a mudar as regras. As pessoas contactadas pelo Observador explicam que as Comissões sugeriram aos ENI que alterassem a forma jurídica da candidatura para formato de empresa, que mudassem a taxa de contribuição para um valor mais elevado — algo que a Segurança Social diz não ser permitido — e passaram a exigir valores mínimos de faturação na criação de negócios que, em teoria, começava do zero. Resumindo, passaram a acrescentar critérios que, segundo os candidatos, não estavam, inicialmente, no regulamento.

“Mudaram as regras a meio, tudo de forma unilateral”, lamenta Sofia.

A esta “mudança de regras” somam-se situações mais pontuais, mas que serviram de entraves adicionais na implementação dos apoios. Alguns empresários relatam ao Observador atrasos de mais de meio ano na análise de candidaturas e que, face ao que dizem ser a “intransigência” demonstrada pelas CCDR, reduziram a duração dos incentivos para menos do que os cerca de 30 meses inicialmente previstos. E isso verificou-se no Norte, Centro e Sul do país e prolongou-se durante meses sem que a tutela tomasse qualquer medida ou decisão. Eventualmente, por opção das CCDR, alguns pagamentos começaram a ser suspensos.

“O meu processo está parado neste momento”, conta ao Observador uma empresária do interior a quem a CCDR pediu, também, que alterasse a candidatura para sociedade unipessoal, “e nós colocámos essas dúvidas. Antes da aprovação da candidatura não foi levantado qualquer problema”. “Disseram que ou passava para empresa ou desistia do projeto. Mas os custos que ia ter seriam imensos”, conta outro beneficiário, “Não se justificava, até porque o erro não foi meu”.

Empresários falam de erro que “podia ter sido evitado”

Os entraves que encontraram já a meio da candidatura apanharam estes empresários de surpresa. Garantem que, ainda no início do processo, procuraram ao máximo confirmar que não havia irregularidades na submissão da candidatura. Enumeram também os vários emails trocados com representantes das CCDR a levantar dúvidas sobre a inscrição no +CO3SO como ENI. Dúvidas que, de resto, foram também levantadas junto da Segurança Social e do Grupo de Ação Local (GAL), que remeteram sempre os esclarecimentos para as Comissões.

Os empresários ouvidos pelo Observador dizem ter provas de que as CCDR validaram todas as questões levantadas, confirmando, inclusive, que seria possível justificar a ausência de rendimentos no caso dos ENI. Até à assinatura dos contratos foi-lhes dito que as candidaturas estavam regularizadas. Só alguns meses depois descobriram que, afinal, não era bem assim. O que se seguiu foram várias tentativas de diálogo, que não surtiram resultados concretos. No caso da CCDR LVT, os empresários acusam mesmo o organismo de “má fé”, “arrogância” e “hostilidade”.

“As respostas que nos deram foram de desresponsabilização”, esclarece uma das empresárias ao Observador, “Não houve ali grande abertura para diálogo. Apenas uma abertura camuflada, a fazer uma pressão gigante para mudar de ENI para unipessoal, com todos os custos associados. E depois começou a ser uma chantagem camuflada”.

“Não tem sido fácil negociar”, assume um dos empresários. Depois de contactos com as GAL locais e das próprias respostas da CCDR, perto de três dezenas de empresários descobriram que não eram casos únicos, começaram a conversar entre si e perceberam que, entre os obstáculos levantados, havia sempre uma ou mais semelhanças.

Medidas de apoio ao emprego com 4.434 candidaturas no valor de mais de 480 milhões de euros

Os empresários com quem o Observador falou acreditam que, na base destes impasses, está a forma como +CO3SO foi pensado e que não reflete as especificidades de um “nicho dos beneficiários”. “O programa está mal construído. O que acontece é que a CCDR não previu que um ENI tem um formato jurídico muito diferente das empresas. Qualquer contabilista olha para este formulário e percebe isso”, diz Sofia, “eles têm receio que o Tribunal de Contas Europeu venha pedir justificações, não querem suportar isto no Orçamento do Estado e, agora, imputa-se toda a responsabilidade às pessoas”.

“Havia algo em nós que já estava a prever isto”, sublinha outra beneficiária que viu o programa aprovado há quase dois anos, “Quiseram aumentar os números, mostrar que o interior estava a ter muito apoio para criar postos de trabalho. Esqueceram-se que os ENI têm um enquadramento jurídico e fiscal específico. Não são iguais às empresas”.

“Eles abriram nestas condições, permitiram isto. Não foi erro nosso”, justifica um dos empresários que garante ter levantado estas questões várias vezes junto das CCDR e, apesar disso, a candidatura ao +CO3SO acabou aprovada.

CCDR rejeita críticas, ministério remete para Comissões

Questionada sobre as queixas dos empresários, a CCRR do Norte esclarece ao Observador que, durante o processo, “se verificou que uma parte dos beneficiários ENI que criaram o seu próprio emprego não conseguia comprovar através de movimentos contabilísticos o pagamento das suas remunerações“. Nesse sentido, foram apresentadas soluções “para resolver o impasse registado”, incluindo “a alteração da forma jurídica dos ENI para, por exemplo, sociedades unipessoais”, uma sugestão descrita pelo organismo como “uma medida cautelar e voluntária, para garantir a boa regularidade da despesa, apesar de se reconhecerem alguns custos administrativos”. Adianta também a CCDR do Norte que “nenhum dos beneficiários que cumpria com as condições de acesso ficou sem pagamentos”, acrescentando que, na região Norte, se registaram “90 candidaturas realizadas por ENI com vista à criação do próprio emprego. Apenas uma ainda não se encontra concluída“.

Já a CCDR LVT remete explicações para o regulamento do +CO3SO, esclarecendo que “os ENI não podem fazer contratos consigo próprios, e eventuais recibos de vencimentos passados à sua ordem não têm validade fiscal ou contabilística, ou seja, não são documentos com valor probatório para este efeito”. Numa resposta enviada ao Observador, o organismo justifica que “a aprovação das candidaturas, bem como o pagamento dos adiantamentos, foi feito num pressuposto de regularidade e boa informação prestada pelos candidatos, o que não veio a verificar-se em algumas das situações”. A Comissão rejeita também as acusações de falta de diálogo, garantindo que “prestou os esclarecimentos necessários” e que, inclusive, a presidente da CCDR LVT realizou uma reunião com quatro ENI em meados do ano passado, mas “não foram apresentados argumentos que permitissem reverter a situação”. Revela ainda ao Observador que foram aprovadas nove candidaturas de ENI que se propunham criar o próprio negócio, das quais “três não regularizaram a sua situação perante a Segurança Social como ENI nem alteraram para sociedade unipessoal ou sociedade por quotas. Nessa sequência, as 3 candidaturas foram extintas”. Foi já depois de a CCDR LVT enviar esta resposta ao Observador, e quase dois anos depois de ver aprovada a candidatura, que Sofia recebeu a carta a dar conta da extinção do seu processo.

“O que eles dizem continua a ser incongruente. Porque eles abriram uma candidatura onde aceitavam as pessoas com estas características. Aprovaram mais de 100 candidaturas neste formato. E agora deram um passo atrás”, defende Sofia, que acusa também as CCDR de tomarem esta decisão, por temerem uma auditoria fiscal da União Europeia.

Os empresários com quem o Observador falou tentaram também obter explicações junto da Presidência da República e do Ministério da Coesão Territorial, que tutela as CCDR, mas ambos remeteram para as Comissões que gerem o programa europeu. Já foi pedida, adicionalmente, uma audiência à ministra Ana Abrunhosa, sempre sem resposta. Também contactado pelo Observador, o Ministério da Coesão Territorial escreve que as dúvidas “devem ser dirigidas às CCDR respetivas, uma vez que são elas que gerem o programa e têm os elementos necessários para ajudar à compreensão de eventuais problemas”.

Sem resposta, empresários recorrem à justiça

Sofia é uma das poucas que já teve uma resposta definitiva da CCDR, na forma do aviso de que iriam extinguir a candidatura, apesar de não saber, ainda, se vai ser obrigada a devolver o dinheiro que já recebeu. Muitos continuam “presos”, sem uma resposta definitiva e com o projeto suspenso, impedidos de aceitar ofertas de emprego e obrigados a assumir custos fixos de negócios recém criados. É uma “embrulhada” que está também há vários meses a ser analisada pela Provedoria de Justiça, que, aos empresários, “descreve uma situação complexa e com várias nuances” e que, apesar das queixas que receberam, não lhes permitiu emitir até agora um parecer definitivo. “Não há nem previsão, nem compromisso”, lamenta Sofia.

Maior parte dos candidatos ao programa de apoio à criação de emprego é do Interior

A falta de respostas deixou os empresários no limbo nos últimos meses e não lhes deixa outra alternativa, senão seguir para tribunal. “Logo que começaram com estas conversas, a meio do ano, comecei a ver que isto não ia dar em nada e mandei logo para jurídico”, adianta outro empresário, “já tenho uma advogada, mas está a ser complicado, porque precisamos de ter uma resposta definitiva da CCDR, a dizer ‘esta é a nossa decisão’”.

“Só eu sei de pelo menos dois lesados que vão para tribunal”, revela outro beneficiário, “porque nós temos provas, temos o contrato, cumprimos os requisitos”.

“O parecer dos advogados é uníssono – as CCDR não têm fundamento jurídico para aquilo que estão a dizer. Não podem assinar um contrato comigo, de boa fé, com as regras definidas, e depois decidem que já não é bem assim”, diz Sofia, lamentando: “Estou exatamente no estado em que estava antes da candidatura. E há aqui muitas pessoas que estão com as vidas completamente suspensas”.