A 4 de setembro de 2021, Alex Murdaugh foi baleado na cabeça enquanto conduzia. Um dos mais poderosos advogados da Carolina do Sul, Murdaugh tinha, três meses antes, vivido uma tragédia pessoal quando a mulher e um dos filhos foram mortos a tiro na propriedade da família. O tiro acertou-lhe de raspão na cabeça e acabou por sobreviver.

Dias depois, a suposta vítima entregou-se às autoridades quando os motivos do ataque se tornaram claros: Murdaugh tinha encomendado a sua própria morte para que o seu outro filho, Buster, recebesse um seguro de vida de 10 milhões de dólares.

Advogado contrata homem para o matar. Objetivo? Garantir seguro milionário ao filho. Problema? Sobreviveu

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Os contornos do caso, já de si insólito, cedo se revelaram a primeira peça num complexo puzzle de mentiras, fraude, conspiração e morte. Podia dar uma série da Netflix — e deu: “Murdaugh Murders: A Southern Scandal” (Os homicídios Murdaugh: Um Escândalo no Sul, em português), lançada este mês, precisamente para coincidir com o julgamento de Alex Murdaugh, que está acusado de matar a mulher e o filho, num caso que capturou a atenção do público e tem até direito a transmissão em direto.

Como chegámos aqui? Vamos por partes. Aquando da detenção em 2021, Murdaugh confessou ter engendrado um plano falhado para defraudar a seguradora e garantir um avultado pagamento ao filho. A defesa justificou as suas ações com o desespero provocado pelas mortes e por um vício de opiáceos que durava há décadas, durante as quais “muitas pessoas aproveitaram-se deste seu vício e da sua capacidade de pagar fundos substanciais por drogas ilegais”, que o levaram à ruína financeira. A versão da acusação, essa, foi bem diferente.

O acidente de barco e as duas mortes em “Moselle”

A tragédia que deu origem a tudo isto teve lugar a 7 de junho de 2021 na propriedade da família — “Moselle”, um vasto terreno que inclui uma casa com quatro quartos, um terreno de caça, um rio para pesca e kayaking, uma quinta e um canil. Foi neste último local que Alex disse às autoridades ter encontrado a mulher, Maggie, e o filho, Paul, mortos a tiro, quando regressou à propriedade por volta das 22h00, após ter ido visitar o pai, doente terminal, e mãe, que sofre de demência. Análises forenses confirmaram mais tarde que o par tinha morrido cerca de uma hora antes de Alex os ter encontrado.

Na comunidade local, não se falava de outra coisa. Desde logo porque a família Murdaugh era uma verdadeira dinastia no sistema legal da Carolina do Sul onde, durante quase um século (de 1920 a 2006) várias gerações serviram como procuradores do 14.º distrito judicial, acumulando riqueza, influência e uma reputação como a família mais poderosa do Lowcountry, como é conhecido o sul do estado norte-americano.

Havia ainda outro motivo de interesse: é que Paul estava a ser julgado por três crimes, incluindo condução sob o efeito de álcool e homicídio por negligência, resultado de um acidente com a embarcação da família em fevereiro de 2019 e que provocou a morte de Mallory Beach, de 19 anos.

Os pais da jovem processaram os Murdaugh, procurando receber uma indemnização milionária pela morte da filha; na altura, Alex disse não ter dinheiro para pagar, e que a família estava à beira da falência. Pouco convencidos, os Beach deram entrada com uma ação judicial que obrigaria Alex a revelar as suas contas bancárias. A audição estava marcada para 10 de junho, mas nunca chegou a acontecer. A morte de Paul, o principal arguido no processo — três dias antes da audição — deu por encerrado o caso.

À polícia, Alex Murdaugh disse que o filho estava a ser alvo de ameaças na internet durante o julgamento e que a família as tinha desvalorizado. Mais tarde, soube-se que a polícia não tinha ficado convencida com esta versão dos factos e que, desde o início, tinha considerado o patriarca dos Murdaugh como o principal suspeito.

A sua cronologia inicial (de que tinha, após ter encontrado os corpos, procurado sinais vitais e só depois ligado para os serviços de emergência) levantou suspeitas. Posteriormente, uma análise dos registos telefónicos de Paul revelou que o álibi de Alex era falso, e que este tinha, de facto, estado no canil onde os corpos foram encontrados minutos antes dos crimes terem lugar. A juntar a tudo isto, as duas armas do crime não foram encontradas, mas análises ao calibre de bala que vitimou Paul e Maggie permitiram às autoridades determinar os tipos de arma — que correspondiam, justamente, às duas armas que tinham desaparecido da coleção dos Murdaugh.

Na sequência da detenção pelo suicídio falhado, veio a saber-se que Alex tinha sido demitido da firma de advogados criada pela família, após terem sido descobertos indícios de fraude e desvio de milhões de dólares em fundos legais nos casos que advogou, e que teriam sido descobertos caso as suas contas bancárias tivessem sido reveladas durante o julgamento de Paul. Pouco depois, foi oficialmente indiciado pelas mortes da mulher e do filho, e em junho de 2022 foi constituído arguido.

Alex Murdaugh mantém teoria da inocência, mesmo perante as contradições

O julgamento começou em janeiro e, segundo a imprensa norte-americana, deverá estar perto do fim. Ao longo de todo o processo, Alex Murdaugh tem mantido a versão da sua inocência. No banco dos réus, alterna entre as lágrimas de um pai e marido caído em desgraça e a postura relaxada de um advogado no seu elemento, habituado a ter sucesso do outro lado do banco dos réus.

Como parte da sua defesa, assumiu que burlou durante anos os seus clientes e a própria firma e pediu desculpa “a todas as pessoas a quem roubei dinheiro durante todos aqueles anos”. Confirmou também que após a descoberta dos crimes financeiros, planeou a conspiração suicida para garantir o pagamento do seguro de vida ao outro filho, mas negou categoricamente a autoria dos assassinatos. “Garanto-vos que mais depressa me matava a mim do que matava um deles. Sem dúvida”.

Por sua vez, a acusação tem confrontado Murdaugh com as contradições que veio apresentando ao longo da investigação, particularmente o álibi forjado para esconder que tinha estado no local do crime minutos antes de este ter lugar. O arguido tem-se justificado com a sua toxicodependência, sustentando que o vício o tornou paranoico (razão pela qual mentiu às autoridades), e que não se lembra de grande parte dos eventos porque “não estava a pensar com clareza” na altura. A certa altura, mudou a sua versão dos factos: afinal não procurou pelos sinais vitais dos membros da família, e ligou logo para o serviço de emergências assim que os encontrou. Confrontado com mais esta contradição no discurso, respondeu, resignado: “Já não sei o que disse”.

O fascínio pelo caso tem ainda motivado a que o julgamento, que decorre à porta aberta e tem transmissão televisiva, se tenha tornado numa espécie de espetáculo de entretenimento para os curiosos. Milhões assistem pela TV e pela internet e, todas as manhãs, uma longa fila de pessoas (algumas das quais percorrendo milhares de quilómetros para lá estar) reúne-se à porta do tribunal de Walterboro, na Carolina do Sul, procurando um lugar na sala para assistir à audição. Nem todas conseguem, mas as “sortudas” têm podido assistir, em primeira mão, ao desenrolar de um enredo melhor do que a ficção.

Os advogados de defesa e acusação devem apresentar nos próximos dias os seus argumentos finais; depois disso, o júri irá reunir-se e deliberar até chegar a um veredito. Seja qual for o resultado, é o próprio Alex Murdaugh que, num dos seus depoimentos no banco dos réus, melhor descreve o caso: “Que teia tão emaranhada tecemos”.