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A raiva especial de Chris Rock

Este artigo tem mais de 1 ano

Pela primeira vez, o humorista falou em palco sobre a agressão de WIll Smith. Só por isso, “Selective Outrage” mereceria atenção. Mas o que tem mais para dizer o espectáculo disponível na Netflix?

Quando foi anunciado o novo "Special" de Chris Rock, um dos grandes humoristas americanos vivos e talvez o que, nas últimas décadas, melhor explorou o que é ser negro nos EUA, todo o fã de comédia pensou o mesmo: este é um momento especial
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Quando foi anunciado o novo "Special" de Chris Rock, um dos grandes humoristas americanos vivos e talvez o que, nas últimas décadas, melhor explorou o que é ser negro nos EUA, todo o fã de comédia pensou o mesmo: este é um momento especial

Quando foi anunciado o novo "Special" de Chris Rock, um dos grandes humoristas americanos vivos e talvez o que, nas últimas décadas, melhor explorou o que é ser negro nos EUA, todo o fã de comédia pensou o mesmo: este é um momento especial

Convém desconfiarem um pouco do que vão ler a seguir, mas, se eu não estiver enganado, este ano, em todos os discursos dos Óscares, os premiados agradeceram à mãe, fizeram questão de dizer que o prémio não era só para eles visto tratar-se de um trabalho de equipa, exortaram a que toda a gente acredite em si próprio tal como eles (os vencedores) acreditaram em si mesmos, até quando o mundo inteiro (exceto a mãe) não acreditava neles; e, num caso, houve mesmo quem, no esforço de bater o recorde mundial de #blessed, agradecesse ao bully que os atazanou durante o liceu.

Esta descrição pode não ser completamente exata: não vi a cerimónia em direto (não sou maluco), puxei a box atrás uns dias depois e, ocasionalmente, fiz fast-forward para não morrer de aborrecimento – mas não deixa de ser caricato que o que outrora era uma indústria concebida por gente que fugiu de casa (porque os pais eram abusadores ou alcoólicos ou drogados) e que era, na sua esmagadora maioria, um conjunto aleatório de bêbedos, drogados, promíscuos sem qualquer moralidade, que usava a cerimónia como ferramenta de marketing disfarçada de celebração do carácter único de obras de arte, passe hoje quatro aborrecidíssimas horas a transmitir discursos exatamente iguais, em que se agradece à mãe e se finge que a indústria do cinema é uma espécie de algodão doce da moralidade e dos bons costumes – o exato oposto das fundações de Hollywood.

Mas talvez tenha sido sempre assim – talvez cada indústria, em cada era, tenha moldado o seu discurso para o exterior de acordo com o que o exterior pede (o facto de isto ser o oposto do que a arte se propõe fazer é irrelevante, Hollywood vende enlatados, não vende arte). Quando muito isto torna a transmissão dos Óscares menos especial – o cinema tem menos importância hoje que as séries, as salas vão perdendo pessoas para o streaming, as audiências dos Óscares caem todos os anos, o discurso torna-se anódino.

[o teaser que anunciou “Selective Outrage”:]

A palavra que usei ali atrás, “Especial”, tem significados diferentes consoante o contexto – no humor começou a ser usado na década de 70 para descrever uma daquelas raras ocasiões em que uma atuação ao vivo de um comediante era filmada para ser transmitida na TV. E isso era “Special”, porque até então a única forma de ver comediantes era ir aos clubes onde eles atuavam. “Special” também se referia ao conteúdo – por norma, as piadas de um “Special” eram ou um set completamente novo de piadas ou então um best-off das piadas de um comediante; seja como for, era um momento especial.

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Até que a Netflix olhou para os números daquilo que as pessoas apreciavam em termos de streaming e chegou a duas conclusões: as mulheres gostam imenso de true crime, pelo que vai daí e nada melhor do que encher a plataforma de conteúdos de true crime; os homens adoram “specials” de comédia em que os comediantes são homens, pelo que vai daí e toca de encher a plataforma de “specials” de comediantes, o que resultou em horas de piadas do sexagenário Ricky Gervais a tentar perceber se as pessoas que se identificam como trans têm ou não pénis, um problema que parece afligir pessoas que já não parecem usar muito o dito.

O modus operandi do capitalismo passa por identificar um padrão (o grupo de pessoas X aprecia o tipo de produto Y) e transformá-lo numa linha de montagem de produtos semelhantes, marketizando-os como objetos únicos (especiais), enquanto fica a assistir – não aos “specials” de comédia, mas à conta bancária a crescer. Disparar para todos os lados não é propriamente a medida da grande arte mas é, ocasionalmente, certeiro: quando foi anunciado o novo “Special” de Chris Rock, um dos grandes humoristas americanos vivos e talvez o que, nas últimas décadas, melhor explorou o que é ser negro nos EUA, todo o fã de comédia pensou o mesmo: este é um momento especial.

Não obrigatoriamente por Rock andar em grande forma, mas pelo que aconteceu nos Óscares no ano passado (o último momento verdadeiramente especial dos Óscares desde que Joe Pesci fez o melhor discurso de agradecimento da história do cinema): Rock fez uma piada sobre Jada Pinkett Smith, em que disse esperar vê-la no próximo filme da série “GI Jane”; Jada usa o cabelo rapado porque tem alopecia – a personagem do filme também tem o cabelo rapado. Não é uma grande piada, mas Will Smith (marido de Jada) inicialmente riu-se, depois olhou para a mulher, subiu ao palco e deu um chapadão em Chris Rock.

Este foi o único momento relevante dos Óscares em décadas: deve um homem bater noutro se o segundo insultar a sua mulher? E aquela piada, feita por um cómico pago para fazer piadas, é uma ofensa? Precisamos de mais porrada na TV para a TV ser relevante? As pessoas que dizem que Smith não devia ter agredido porque, que mais não seja, estão a dar argumentos aos racistas – essas pessoas estão a exigir mais de Smith do que de um ser humano normal (que não seja estrela)? E onde é que eu pus o meu isqueiro? Honestamente, essa é a questão que mais me preocupa: onde é que eu pus o meu isqueiro?

Mas fica sempre a impressão de que, no fundo, o "Special" existe como forma de Chris Rock atacar Will Smith e, de permeio, abordar alguns temas que o irritam – isto é, na sua maioria as piadas são boas (algumas são mesmo muito boas), mas o suposto fio condutor nem sempre está presente

Rock voltou aos palcos pouco depois, mas nunca falou publicamente sobre o assunto; pelo que mesmo que “Selective Outrage” (o nome do novo “special” de Rock) não fosse nada de especial, sê-lo-ia na mesma, porque seria sempre visto como o momento em que um macho alfa responde ao momento em que de, forma mais clara, se tornou evidente o que é o machismo tóxico (o momento em que Smith se sentiu obrigado a bater em Rock para “defender a sua mulher”, como se a sua mulher fosse um ser indefeso, incapaz de ripostar ou ignorar ou decidir por si o que fazer).

A violência não é o modus operandi de Chris Rock – a dada altura ele diz que enquanto Smith passou a carreira toda em tronco nu (porque é musculado), ele (Rock), se tivesse de fazer uma cena em que tivesse de fazer de conta que o operavam ao coração, fazia a cena vestido com uma camisola (é uma ótima piada, e vem na linha do que Rock faz melhor: colocar-se no lugar do underdog).

O nome “Selected Outrage” indica de antemão que Rock vai responder à chapada de Smith porque foi isso que Smith fez: de todos os assuntos no mundo que havia para ficar ofendido, Smith escolheu uma piada fracota da qual inicialmente se riu. Rock não perde muito tempo a chegar a Smith – a primeira coisa que diz é que vai tentar “fazer um show sem ofender ninguém, porque nunca se sabe quem vai ficar triggered”.  “As palavras doem, costuma dizer-se”, continua Rock, preparando a (peço desculpa) punchline: “Qualquer pessoa que diga isto nunca levou um murro na cara”.

Depois Rock torna a selective outrage de Smith num conceito: “Vocês sabem o que é selective outrage. Uma pessoa faz uma coisa e é cancelada, outra faz o mesmo e não acontece nada. Um tipo passa canções do Michael Jackson e é uma festa, outra passa R Kelly e é um problema – é o mesmo crime, só que umas canções são melhores que outras”. Não sendo absolutamente exata, é uma ótima piada e um sinal dos tempos: com tanta gente a dedicar-se ao virtue signaling horas por dia, acabamos sempre por bradar contra o óbvio e fechar os olhos ao complexo. Passamos horas a mostrar ao mundo, nas redes sociais, que somos ótimas pessoas, porque fazemos cherry picking dos assuntos em que nos envolvemos – mas depois salta-nos a tampa e revelamos que somos piores do que os que criticamos.

O conceito não é explorado ao máximo do seu potencial – mas é suficiente lato para Rock conseguir criar uma dezena de piadas que se tornarão clássicas: num dado momento, diz que passou por uma loja de produtos de yoga que tinha um anúncio na montra; no anúncio a marca dizia que estava contra o racismo, a homofobia, todas as coisas más que há no mundo e todas as que ainda virão a existir. No fim, a marca dizia que não permitia discurso de ódio e estava contra o ódio.

[o making of de “Selective Outrage”:]

As calças de yoga custavam 100 dólares – e Rock atira: “100 dollar non racista yoga pants – bom, eles odeiam uma coisa: odeiam os pobres”. Rock faz uma pausa e diz: “E aposto que toda a gente aqui preferia calças de yoga racistas a a calças de 100 dólares” e depois imita andar enquanto as calças lhe chamam “Nigga”. Um momento magnífico em que se demonstra como a comédia serve para desmontar o ridículo.

Com um conceito tão largo há lugar para todo o tipo de piadas: aquelas em que Rock afirma que toda a gente quer ser vítima (o que faz com que não ouçamos as verdadeiras vítimas), piadas sobre brancos (“Os brancos acham que estão a perder o país – viram os motins no Capitólio? Eles tentaram derrubar o governo. Qual governo? O deles [dos brancos]”, relações entre homens e mulheres, os filhos, etc.

Mas fica sempre a impressão de que, no fundo, o “Special” existe como forma de Rock atacar Smith e, de permeio, abordar alguns temas que o irritam – isto é, na sua maioria as piadas são boas (algumas são mesmo muito boas), mas o suposto fio condutor nem sempre está presente. Era completamente dispensável a parte final, em que Rock descreve a relação entre os Smith (o facto de não serem monogâmicos e falarem disso publicamente); chega quase a soar a bullying.

O final, no entanto, é brilhante: Rock diz que toda a gente lhe perguntou porque é que não ripostou. “Porque é que não ripostei? Porque tive pais. Porque fui bem educado. E sabem o que é que a minha mãe me ensinou? A nunca andar à porrada em frente de brancos”. E com esta tirada Rock transformou um show irregular com uma dezena de pontos altos em algo verdadeiramente especial.

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