O padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos principais conselheiros do Papa Francisco no combate aos abusos sexuais de menores na Igreja Católica, demitiu-se do seu cargo na Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores (CPPM), o organismo do Vaticano responsável por coordenar as políticas da Santa Sé no que toca à proteção dos menores, à prevenção dos abusos sexuais e à investigação dos alegados abusadores no seio da Igreja.

A demissão foi anunciada pelo próprio Zollner através de um comunicado publicado na sua página do Twitter, no qual o jesuíta alemão deixa várias críticas ao funcionamento do organismo, nomeadamente no que toca à falta de transparência nos processos de decisão e de escolha dos funcionários, bem como ao uso do dinheiro alocado à comissão.

No comunicado, Zollner explica que apresentou a sua demissão após nove anos a trabalhar na CPPM e que esta foi aceite no dia 14 de março de 2023. “A proteção das crianças e das pessoas vulneráveis tem de estar no coração da missão da Igreja Católica. Essa foi a esperança que eu e muitos outros partilhámos desde que a comissão foi criada, em 2014. Contudo, no meu trabalho na comissão, apercebi-me de problemas que têm de ser abordados urgentemente e que tornaram impossível que eu continuasse“, escreve o sacerdote alemão, que é também psicólogo e especialista em questões de violência sexual.

“Ao longo dos últimos anos, fui ficando cada vez mais preocupado com o modo como a comissão, na minha ótica, procurou alcançar esse objetivo, particularmente nas áreas da responsabilidade, cumprimento de normas, prestação de contas e transparência”, diz Zollner, salientando que esses devem ser princípios a que qualquer instituição da Igreja Católica está obrigada.

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Concretamente, Zollner diz ter testemunhado “falta de clareza relativamente ao processo de seleção de membros e funcionários e aos seus respetivos papéis e responsabilidades”.

O padre alemão diz ainda “outra área de preocupação é a da responsabilização financeira“, que considera “inadequada“. “É primordial que a comissão mostre, com clareza, como é que os fundos são usados no seu trabalho”, destaca o sacerdote.

Zollner vai mais longe e diz que “tem de haver transparência no modo como as decisões são tomadas na comissão” e acusa: “Com demasiada frequência, havia informação insuficiente e comunicação vaga com os membros sobre como decisões concretas foram tomadas.”

A última crítica de Zollner prende-se com a recente reforma da Cúria Romana levada a cabo pelo Papa Francisco, que colocou a CPPM dentro da estrutura do Dicastério para a Doutrina da Fé — uma medida que foi entendida como uma valorização do organismo, uma vez que foi colocado sob a tutela de um dos mais poderosos departamentos do Vaticano, que é responsável pelos processos penais contra os clérigos acusados dos delitos mais graves, incluindo os abusos sexuais contra crianças.

Não estou a par de quaisquer regulamentações que orientem a relação entre a comissão e o Dicastério para a Doutrina da Fé, desde que a comissão foi colocada dentro do dicastério no último mês de junho”, diz Zollner.

“São estes problemas estruturais e práticos que me levam a dissociar-me da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores”, declara o padre alemão. “Pretendo focar-me no meu novo papel como consultor da diocese de Roma, bem como no de diretor do Instituto de Antropologia [da Universidade Gregoriana], buscando tornar o mundo um lugar mais seguro para as crianças e as pessoas vulneráveis, através dos nossos esforços académicos e científicos.”

Zollner termina a nota dizendo que permanece “aberto a discutir” com a comissão e manifesta “esperança” na resolução dos problemas identificados.

Num outro comunicado, o cardeal Seán O’Malley, presidente do organismo, confirma que aceitou a demissão de Zollner. “Ele disse-me que chegou à sua decisão depois de refletir sobre a sua recente nomeação como consultor da diocese de Roma. Considerando isto e todas as suas outras responsabilidades, ele pediu para ser retirado do seu lugar na comissão e o Santo Padre aceitou o seu pedido, com o mais profundo agradecimento pelos seus muitos anos de serviço”, diz O’Malley.

Nessa nota, o cardeal americano deixa rasgados elogios a Zollner, sublinhando que o padre alemão ajudou a comissão a crescer e a implementar múltiplos projetos — especialmente a cimeira global de bispos em fevereiro de 2019.

“Através das muitas formações que fez com bispos e líderes religiosos ao longo dos anos, viajando por todo o mundo, ele tornou-se num embaixador da proteção das crianças e vai continuar a ser uma presença constante neste importante trabalho”, diz ainda O’Malley, que sublinha querer continuar a cooperar com Zollner.

A Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores foi formalmente criada em 2014 por decisão do Papa Francisco, que herdou do Papa Bento XVI uma Igreja à época marcada por uma crescente crise relacionada com os abusos sexuais de menores.

Presidida pelo cardeal americano Seán O’Malley, arcebispo de Boston, a comissão tem como principais missões o aconselhamento do Papa Francisco na definição das políticas da Igreja Católica no que toca ao combate aos abusos sexuais de menores.

Desde o início, várias críticas foram apontadas à comissão, sobretudo no que diz respeito à incapacidade do organismo de, pelo menos numa fase inicial, fazer vingar as suas propostas dentro da pesada estrutura do Vaticano. Essas críticas levaram inclusivamente à demissão da irlandesa Marie Collins, uma sobrevivente de abusos na Igreja, do seu cargo na comissão, em 2017.

A atribuição de um maior peso político dentro da estrutura vaticana à CPPM era um desígnio do Papa Francisco, que incluiu a comissão no Dicastério para a Doutrina da Fé na reforma da Cúria Romana que entrou em vigor no verão passado.

Além de teólogo e psicólogo, o padre jesuíta Hans Zollner é o presidente do Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana, em Roma, e foi um dos organizadores da cimeira de bispos sobre os abusos de menores convocada pelo Papa Francisco em 2019 — uma reunião magna que foi o ponto de partida para um conjunto de reformas implementadas na Igreja nos últimos quatro anos.

Em fevereiro de 2019, Hans Zollner deu uma entrevista ao Observador na qual defendia que os bispos católicos tinham uma “enorme obrigação moral” de comunicar à polícia os casos de abuso sexual de menores de que tivessem conhecimento. No ano seguinte, o Vaticano implementaria normas que tornaram essa denúncia às autoridades obrigatória para os bispos.

Bispos têm “enorme obrigação moral” de denunciar abusos sexuais à polícia. Entrevista ao responsável pelo encontro inédito no Vaticano

Considerado um dos principais especialistas do mundo no tema dos abusos sexuais de menores no contexto da Igreja Católica, o padre Hans Zollner acompanhou de perto o trabalho da comissão independente que investigou este assunto em Portugal. Em maio do ano passado, Zollner foi um dos oradores numa conferência organizada pela comissão independente em Lisboa. Na ocasião, Zollner disse taxativamente que a Igreja tinha de assumir o encobrimento dos crimes.

Responsável do Vaticano em Lisboa sobre abusos na Igreja: “Temos de assumir que encobrimos crimes”

Em fevereiro deste ano, quando a comissão independente apresentou o seu relatório final (que aponta para 4.815 potenciais vítimas de abusos em Portugal entre 1950 e 2022), o padre Hans Zollner deslocou-se pessoalmente a Lisboa para estar na plateia e assistir à divulgação do documento, que classificou como um momento “triste” para a Igreja em Portugal, mas também de “esperança”.

[Já saiu: pode ouvir aqui o terceiro episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio e aqui o segundo episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]