Vários cartazes foram colocados esta terça-feira em diferentes pontos da cidade de Roma, especialmente nas proximidades do Vaticano, com mensagens de apoio à realização da missa em latim — uma iniciativa que, apesar de não incluir referências diretas ao Papa Francisco, está a ser lida como uma crítica direta à decisão tomada em 2021 pelo Papa argentino de impor fortes restrições a este tipo de celebrações que seguem o rito católico antigo.

Esta é a segunda vez que, do dia para a noite, surgem na cidade de Roma cartazes críticos do Papa Francisco. A primeira tinha acontecido em fevereiro de 2017, à época devido ao conflito que se vivia no interior da Ordem de Malta (como o Observador detalhava num explicador publicado na altura). Agora, contudo, ao contrário do que sucedeu em 2017, os cartazes não surgiram anonimamente: a sua instalação foi reivindicada por um movimento tradicionalista italiano, que reúne várias entidades, blogues e associações.

O grupo publicou um comunicado de imprensa e incluiu nos cartazes um código QR através do qual é possível chegar ao manifesto do movimento.

Também ao contrário do que aconteceu em 2017, os cartazes que surgiram esta terça-feira em Roma não incluem qualquer referência explícita ao Papa Francisco. Em vez disso, os cartazes — há quatro variações — contêm frases de antigos papas em defesa da missa antiga. Todos os cartazes são encimados pela frase: “Por amor do Papa. Pela paz e unidade da Igreja. Pela liberdade da missa tradicional latina.”

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Num dos cartazes, surge uma frase do Papa Pio V, que em 1570 publicou o missal com os ritos eucarísticos que ficariam em vigor durante quase quatrocentos anos, até ao Concílio Vaticano II, que na década de 1960 adotou a missa nova — nas línguas dos diferentes países, com o celebrante voltado para os participantes. Na bula Quo Primum Tempore, citada no cartaz, Pio V escreveu: “Decretamos e declaramos que as presentes Cartas em nenhum momento podem ser revogadas ou diminuídas, mas sempre estáveis ​​e válidas devem perseverar na sua vigência.”

Outro cartaz inclui uma frase de João Paulo II: “No Missal Romano, conhecido como o de São Pio V, como em várias Liturgias Orientais, há belas orações com as quais o sacerdote expressa o mais profundo sentimento de humildade e reverência diante dos santos mistérios: elas revelam a própria substância de qualquer Liturgia.”

Há também dois cartazes feitos com frases de Bento XVI. Num deles, lê-se: “O Missal Romano promulgado por São Pio V e reeditado pelo Beato João XXIII deve ser tido com a devida honra pelo seu uso venerável e antigo.” Noutro, surge a seguinte declaração: “O que era sagrado para as gerações anteriores permanece sagrado e grande para nós também, e não pode subitamente ser completamente proibido ou mesmo julgado prejudicial.”

Segundo o comunicado de imprensa tornado público, a iniciativa partiu de grupos católicos incluindo o Comité Nacional para a Summorum Pontificum, a Associação São Miguel Arcanjo e os blogues Messainlatino e Campari & de Maistre. Todos estes grupos católicos, associados à ala mais tradicionalista da Igreja Católica em Itália, têm-se destacado por defenderem publicamente a missa em latim na Igreja Católica — e de uma forma ainda mais sonante desde as restrições aplicadas em 2021 pelo Papa Francisco.

Os organizadores da iniciativa dizem que, com os cartazes disseminados por Roma, desejam “tornar pública a sua profunda ligação à missa tradicional num momento em que parece estar a ser planeada a sua extinção”. Os envolvidos “fazem-no por amor ao Papa, para que ele possa, paternalmente, estar aberto a compreender estas periferias litúrgicas que já não se sentem acolhidas na Igreja, porque encontram na liturgia tradicional a expressão inteira e completa da fé católica”, lê-se na nota, em que se destaca o uso da palavra “periferias”, clássica do pontificado de Francisco.

“A crescente hostilidade contra a liturgia tradicional não tem justificação, nem num nível teológico nem num nível pastoral”, diz o comunicado. “As comunidades que celebram a liturgia de acordo com o Missal Romano de 1962 não são rebeldes contra a Igreja. Pelo contrário, abençoados pelo firme crescimento de vocações laicais e sacerdotais, constituem um exemplo de perseverança na fé católica e na unidade, num mundo cada vez mais insensível ao evangelho e num contexto eclesial que cede cada vez mais a impulsos de desintegração.”

O comunicado argumenta ainda que “aqueles que vão à ‘missa em latim’ não são crentes de segunda categoria, nem são desviados que têm de ser reeducados, nem um fardo de que é necessário livrar-se”. Os organizadores esperam que a sua voz seja “acolhida, ouvida e tida em consideração” pelo Vaticano.

Até à década de 1960, a missa na Igreja Católica era celebrada em latim e com o sacerdote de costas para os participantes, segundo o rito definido por Pio V. Foi precisamente na década de 1960 que o Concílio Vaticano II, convocado em 1961 pelo Papa João XXIII e encerrado em 1965 pelo Papa Paulo VI, determinou a criação da nova forma de celebrar a missa católica, ainda hoje em vigor, remetendo a missa antiga para uma forma extraordinária, que ainda podia ser usada, mas não como forma preferencial. Entre as mudanças mais visíveis nas regras introduzidas na década de 1960 encontra-se a celebração da missa nas línguas próprias de cada país e com o sacerdote voltado para os participantes, num altar separado da parede.

A missa em latim segundo o rito antigo, que continuou a ser usada em situações excecionais, tornou-se gradualmente num dos principais símbolos associados ao setor mais conservador e tradicionalista da Igreja Católica.

Uma das instituições que mais popularizaram o recurso moderno ao rito antigo foi a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (FSSPX), um movimento dissidente criado em 1970 pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre, que recusa as determinações do Concílio Vaticano II por considerá-las heréticas e que, por isso, está de relações cortadas com a Santa Sé.

Em 2007, o Papa Bento XVI publicou uma lei interna que liberalizou o recurso ao ritual antigo, numa tentativa de reaproximar da Igreja alguns movimentos que começavam a radicalizar-se. Nessa legislação, Bento XVI determinou que qualquer sacerdote poderia recorrer ao ritual antigo para celebrar missa em privado e que o mesmo poderia acontecer em paróquias onde existisse um “grupo estável de fiéis aderentes à precedente tradição litúrgica”.

Com os conservadores na mira, Papa Francisco restringe celebração da missa em latim

Contudo, em julho de 2021, o Papa Francisco aprovou uma legislação interna que implementou apertadas restrições à celebração da missa em latim, revertendo a liberalização de Bento XVI. Segundo a nova lei, passou a ser obrigatória uma autorização explícita do bispo para que a missa antiga seja usada.

Além disso, o Papa Francisco introduziu uma série de mudanças nos critérios para aceitar o recurso ao ritual antigo. Já no caso dos grupos de fiéis que já estivessem atualmente organizados em torno do ritual antigo, o bispo deve “comprovar que estes grupos não excluem a validade e legitimidade da reforma litúrgica, dos ditames do Concílio Vaticano II e do magistério dos Sumos Pontífices” — ou seja, é necessário garantir que os utilizadores dos rituais antigos não se opõem à atual linha ideológica seguida pela Igreja.

A medida mais drástica da nova legislação foi a proibição da criação de novos grupos que celebrem com o ritual antigo.

Como dizia ao Observador em 2021 o então bispo de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro, atual arcebispo de Braga, presidente da comissão de liturgia da Conferência Episcopal Portuguesa, o uso da missa em latim foi “instrumentalizado e transformado em bandeira” por grupos que se opõem ao Concílio Vaticano II, embora em Portugal não se tenha chegado ao “extremo”.