2019 continua a ser um ano chave para a carreira discográfica de Angel Bat Dawid, que atua no festival Tremor, em Ponta Delgada, neste sábado (1 de abril), onde esteve a trabalhar em residência com a Banda Fundação Brasileira. Acaba de editar Requiem For Jazz, álbum que se ouve como uma peça, uma apresentação em volta do jazz e sua história.

Angel Bat Dawid trabalhou em volta de uma performance de 2019, no Hyde Park Jazz Festival, em Chicago. Foi em 2019 que saiu o muito aclamado The Oracle, melhor do ano para muitas publicações (incluindo a revista The Wire), uma das melhores estreias dos últimos anos. E foi também em 2019 registada a performance de Live, álbum ao vivo que editou em finais de 2020, com o primeiro concerto que deu na Europa com a Tha Brothahood, em Berlim.

Esse foi o ano antes de tudo o resto, pré-pandemia, e isso talvez explique alguns destes movimentos. Mas voltar atrás e processar o que está feito é parte do método de Angel Bat Dawid. The Oracle resultou de um trabalho de anos, de gravações ocasionais — mas intencionais — de Angel Bat Dawid (cujo instrumento de eleição é o clarinete, mas não se fica por aí), muitas no telemóvel. De certa forma, The Oracle é a história de uma vida, de uma mulher que sobreviveu a um tumor no cérebro, que passou anos a fazer biscates para pagar contas e que a dado momento decide deixar de trabalhar, levantar o dinheiro da pensão e viajar pelo mundo para se convencer a criar música. Foi assim que Bat Dawid descobriu uma linguagem única de jazz espiritual.

[“Recall the Joy” ao vivo:]

Pela dinâmica, versatilidade, liberdade e atitude, é justo – e nada precipitado – considerar Angel Bat Dawid como uma descendente de Sun Ra. Embora o cosmos lhe interesse menos e, até ao momento, não tenha puxado nenhum imaginário ou narrativa para andar à sua órbita, mas o modo libertário e inesperado com que cria e produz, com um discurso adequado ao século XXI, concentrado na história da música negra e no afrofuturismo, colocam-na na linhagem desse outro profeta: não é por acaso que Marshall Allen, Knoel Scott e a Sun Ra Arkestra surgem no final de Requiem For Jazz.

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Em The Oracle denotava-se um ecletismo desafiante, raro para um álbum de estreia. Era um tudo ou nada poderoso, quase sempre com o dedo do meio levantado, não como um gesto ofensivo mas numa demanda de “calem-se, agora é o meu momento.” E era, de facto. O mundo necessitava de um álbum como The Oracle para agitar as águas, Que fosse para lá de um discurso e falasse de possibilidades do jazz de uma forma real, através do som. Daí que Requiem For Jazz seja o desafio seguinte. Um álbum que assume, pelo título, que o jazz está morto. Mas será mesmo assim?

Inspirada pelo filme “The Cry Of Jazz”, de Edward O. Bland (1959), Angel Bat Dawid construiu uma peça para quinze músicos – na apresentação registada no Hyde Park Jazz Festival incluía músicos de diferentes gerações —, com vocalistas do Black Monument Ensemble, com dançarinos e elementos visuais. A ambição era a de, em 12 movimentos, contar a história da música negra, não necessariamente por uma ordem, mas como existe na cultura e na história norte-americanas.

Eis Requiem For Jazz, vinte e quatro temas que capturam uma performance e que assinam assim um digno sucessor de The Oracle, pela forma como Bat Dawid pós-produziu a atuação, adicionou elementos e os trabalhou de forma a que tudo soasse a um álbum de estúdio, mas sem nunca perder a força e o momento de uma performance. Um híbrido que vive entre “a morte do jazz como o conhecemos” e os muitos recursos que ao longo de décadas tem construído essa linguagem, esse mundo.

[ouça “Requiem for Jazz” através do Spotify:]

É importante referir que Angel Bat Dawid não deseja a morte do jazz nem a proclama. Esta é uma mensagem que serve de ponto de partida, uma provocação. Requiem For Jazz não é um álbum convencional. Não há propriamente canções – embora seja composto por 24 delas —3, não se pode entrar a qualquer momento e esperar uma gratificação. Essa acontece ouvindo de uma ponta a outra, absorvendo as dinâmicas da performance e o modo como a música a pós-produziu. O ouvinte tanto se sente na plateia do Hyde Park Jazz Festival, com a mistura do álbum a criar uma excelsa proximidade, como se sente colocado fora do seu lugar: não está em 2019 nem a ver e ouvir Angel Bat Dawid e os seus músicos ao vivo, está no conforto do lar (ou onde quer que esteja, mesmo que desconfortável).

A sensação existe com um propósito: lançar a confusão sobre o lugar de cada um. No fundo, questionar, questionar a música que ouvimos, como a ouvimos e para que é que a ouvimos. Nos instantes finais de Requiem For Jazz, Angel Bat Dawid discursa: “A morte do jazz é a primeira exclamação da salvação do negro, pelo nascimento de uma nova forma de vida”. Deixando claro logo a seguir, interpretando o que acabou de dizer: “Esta música não são anotações numa página, é com esta música que sobrevivemos. Não nos tirem isto. É a nossa forma de sobreviver nesta condição infernal. Está aqui a salvação do negro e o resto da América, se a América compreender que a esperança depende do negro norte-americano.”

Antes do mundo saber quem era Angel Bat Dawid, a música foi a forma que descobriu para relançar a vida após uma experiência limite, um tumor. Hoje essa música é o jazz. Para renascer, é preciso morrer e essa é a mensagem primordial de Requiem For Jazz: um mapa, uma carta de intenções, de uma música insatisfeita com as fórmulas e com uma vontade permanente de mudar. Não vê fronteiras no jazz, no som, mas um veículo de transformação pessoal, social e histórica. O futuro faz-se com ela.