O Parlamento voltou a aprovar o decreto que prevê a despenalização da eutanásia. A proposta mais uma vez alterada, desta vez para responder ao último veto do Tribunal Constitucional, foi subscrita por PS, IL, Bloco de Esquerda e PAN e aprovada por estes partidos e por seis deputados do PSD e o deputado único do Livre, Rui Tavares.
Houve uma abstenção do PS e cinco votos contra na bancada socialista.
Horas antes, no Parlamento, os partidos tinham debatido, mais uma vez, o decreto e as novas alterações com que tentam contornar novo veto. “Acreditamos que estão criadas as condições de conforto para uma promulgação do Presidente. A margem do legislador foi testada como nunca. É a lei mais escrutinada de que temos memória, e de certa forma ainda bem. E tem das maiores maiorias parlamentares de sempre”, avisou. “Precisamos de uma paz”.
Quanto a uma das alterações feitas nesta nova versão do projeto — os deputados deixaram cair um “e” que podia mudar o sentido da definição de sofrimento exigível para pedir a eutanásia (estava prevista a exigência de um sofrimento “físico, espiritual e psicológico”) — Moreira frisou não estar de acordo com a interpretação do Tribunal Constitucional de que esta seria uma exigência cumulativa, mas concedendo que os partidos cederam para tentar contornar mais um veto.
Em causa está também uma alteração de fundo no diploma: nesta versão, a eutanásia passa a só ser possível se o paciente for fisicamente incapaz de cometer suicídio assistido, forma que os partidos encontraram de tentar contornar o veto do Tribunal Constitucional.
Marcelo diz que só promulga lei da eutanásia se não tiver dúvidas constitucionais e políticas
E o Chega entrou ao ataque. “Vamos deixar a paz e o amor”, sugeriu André Ventura, lembrando que o líder da bancada do PS, Eurico Brilhante Dias, admitiu quinta-feira existir algum “desconforto” com esta nova versão. E questionou as alterações ao diploma: “Quem não conseguir matar-se, o Estado mata-o, é assim?”. Para Ventura, este projeto é uma porta aberta à “discricionariedade” da lei, além de poder estar mal desenhada: o deputado recordou que o Código Penal proíbe o auxílio ou incitamento ao suicídio.
Para Ventura, a nova versão mostra a “pressa” e a “obsessão” da esquerda com o tema, insistindo na prioridade que deve ser dada ao reforço dos cuidados paliativos. “A fórmula que o PS encontrou para esta solução não lembra a ninguém” e “não há nenhum país” que tenha aprovado este modelo, frisou. “É um absurdo e a maior trapalhada jurídica desta legislatura”.
“Não me surpreende que não goste de paz ou amor. É evidente todos os dias”, respondeu Moreira. E reconheceu que a versão não é a ideal para o PS, mas antes a que foi “imposta” pela leitura das declarações de voto dos juízes do Palácio Ratton (que levantavam a questão do suicídio assistido).
“Claro que eu preferia a versão anterior, mas todos aqui somos democratas e respeitamos o Tribunal Constitucional”, assumiu Moreira. “Acatamos esse entendimento, é o Estado de Direito. Habitue-se”, rematou, dirigindo-se a Ventura.
Bloco critica “extremistas”, direita pede referendo (mas zanga-se)
Do lado do Bloco de Esquerda, Catarina Martins frisou que o acórdão do TC acabou por não dar razão a “nada” nos motivos que Marcelo Rebelo de Sousa tinha invocado para pedir a fiscalização da lei — “e essa é a dimensão mais relevante” do acórdão que confirmou o último veto, sublinhou. O Bloco diz estar tranquilo com as “afinações da lei” que foi preciso fazer, atendendo às declarações dos juízes. “Estamos certos de que o Parlamento corresponde assim plenamente às exigências do TC”. É desta, acreditam os bloquistas.
“Cada dia que passa é mais claro que há um amplo consenso na sociedade portuguesa favorável à morte medicamente assistida”, disse Catarina Martins, criticando quem apostou em “manobras dilatórias” e “ruído” para atrapalhar o processo — uma possível referência a partidos como CDS ou Chega, que conseguiram adiar várias vezes a lei. Esse será um “pequeno núcleo extremista”, garantiu, contra um “reforço da tolerância” — e Ventura respondeu: “Se estão tão convencidos de que há consenso, vamos a referendo”.
A deputada Patrícia Gilvaz, da Iniciativa Liberal (outro dos partidos proponentes), interveio para dizer que os problemas constitucionais foram “corrigidos” e que o Parlamento está “inequivocamente pronto” para aprovar finalmente a lei. “Todos os portugueses passam a ser titulares deste direito, mas cabe a cada um essa escolha”. A IL louvou ainda os “esforços” do Parlamento no trabalho sobre esta proposta, que se arrasta desde 2016.
Já Inês Sousa Real, do PAN — que também subscreve a proposta — também sublinhou que este é um dos processos mais participados e debatidos entre os deputados. Esta não é a solução que todos “desejariam” apresentar, admitiu também. “Mas numa democracia devemos respeitar e saber interpretar o crivo do Tribunal Constitucional”, justificou.
Pelo PCP, que é contra a eutanásia, Alma Rivera garantiu que votar assim não é uma opção de “ânimo leve” e defendeu que esta não é uma guerra da esquerda contra a direita. “O que decidimos é uma opção legislativa e não um julgamento das consciências”, explicou, defendendo que a conclusão da “reflexão profunda” dos comunistas é que a sociedade não deve ser uma soma das opções individuais sem olhar para as “consequências sociais” da decisão, e sem garantir cuidados paliativos.
Rui Tavares, do Livre, disse que este debate é uma questão de “respeito” pela liberdade individual e pela situação em que cada pessoa está quando sente um “sofrimento atroz”, mas também pelo Estado de Direito, no qual o legislador “não decide sozinho”. O debate dentro e fora do Parlamento foi feito com “seriedade”, defendeu.
O PSD dá, nesta matéria, liberdade de voto aos seus deputados, sendo que a esmagadora maioria tem votado contra e que Luís Montenegro defende que a matéria seja decidida com recurso a um referendo. A deputada Paula Cardoso alinhou no argumento de André Ventura, de que a mudança de paradigma que prioriza o suicídio assistido vai contra o Código Penal, assim como que o tempo para analisar o novo texto (entregue na quarta-feira à tarde) foi curto.
E frisou que não há provas de que haja um consenso na sociedade portuguesa, voltando a defender a proposta do PSD de referendo, por considerar que os votos dos deputados têm mais a ver com a consciência individual de cada um do que com a vontade coletiva dos portugueses. “É uma questão de relevante interesse nacional, é imperativo”. Disse ainda que o PSD foi vítima de uma “manobra de secretaria” quando a proposta de referendo foi “eliminada, como se diz na gíria do futebol” — e prometeu que na próxima sessão legislativa o PSD voltará a propor o mesmo.
Perante as queixas do PSD e a ideia de que o Chega deu a mão ao PS para chumbar a proposta, Ventura garantiu que foi apenas a “lei” (a proposta de referendo não avançou porque já tinha havido outra, do Chega, na mesma sessão legislativa, e essa repetição não pode acontecer). Mas desafiou o PSD a, quando a direita tiver maioria, revogar esta a despenalização da eutanásia. O debate acabaria por se transformar, na reta final, numa picardia entre PSD e Chega, e Paula Cardoso acabou por argumentar que as perguntas concretas das duas propostas de referendo eram diferentes e por isso o facto de haver uma proposta anterior do Chega não invalidaria a do PSD. “O PSD tem cabeça, massa crítica e capacidade para pensar, tomaremos as nossas decisões e não aceitamos reptos de ninguém”, arrumou.