A quantidade, variedade e qualidade dos grafitos no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, continuam a surpreender, mais de 600 anos após o início da sua construção, disse o diretor do monumento, Joaquim Ruivo.
“O seu elevado número [milhares], a variedade dos temas, a qualidade plástica de algum deles, a ingenuidade de tantos outros” são aspetos que Joaquim Ruivo destacou à agência Lusa.
Segundo o diretor do monumento, há grafitos “praticamente em todo o Mosteiro, com exceção da Igreja, da Capela do Fundador e do corpo exterior do lado norte e da fachada principal”.
“Estão com grande abundância nos dois claustros, na Sala do Capítulo, no dormitório, no interior das Capelas Imperfeitas e em todo o exterior das paredes sul e leste”, precisou Joaquim Ruivo.
Entre os grafitos, realçou “barcos em grande número” e de variada tipologia, sendo também “muito abundantes” motivos “arquitetónicos e vegetalistas”.
O responsável do monumento explicou que desenhados estão, igualmente, “moinhos com pás retangulares de madeira, tal como existem na Europa do Norte e que chegaram tarde à Península Ibérica”, e dois castelos, “um enigmático, um outro parecido com o de Porto de Mós”.
Ainda representados em grafitos estão trajes femininos, diabretes, caricaturas, retratos, falcoeiros ou cavaleiros, assim como letras maiúsculas góticas e gótico cursivo, além de jogos.
Entre os grafitos de animais o “mais famoso é o da cegonha”, mas há peixes e veados, e outros grafitos são relativos à heráldica.
Joaquim Ruivo salientou o grafito descoberto, há poucos meses, com a limpeza do Claustro Afonso V: “Uma grua/guindaste igual à utilizada por essa Europa fora na construção dos edifícios góticos e já utilizada pelos romanos”.
De acordo com o diretor, a maioria dos grafitos foi feita “com ponteiros de carvão e argila corada, o que faria prever o seu apagamento a curto prazo”.
“Mas, curiosamente, ao longo dos anos a ação da água e humidade provocaram a hidrólise da calcite e a sua passagem de solução aquosa para alcalina. Formou-se, assim, uma película de cristais de calcite que cobriu os pigmentos, os fixou e, literalmente, os transformou em pedra, preservando-os definitivamente”, esclareceu.
De acordo com Joaquim Ruivo, “nas paredes exteriores (sul-nascente e sul-poente) encontra-se outro tipo de grafito, que resultou de incisões feitas com objetos metálicos e que acabaram realçados pela coloração diferencial da pátina, avivando essas incisões num tom laranja”.
“Finalmente, a varanda norte do piso superior Claustro Afonso V está repleta também de grafitos incisos, mas esses, com toda a probabilidade, feitos pelos artífices que ficaram alojados nas dependências anexas, após a grande campanha de restauro iniciada em 1840”, declarou.
Para Joaquim Ruivo, “a existência de tantos grafitos representando barcos de todas as tipologias” remete “para a importância no estaleiro batalhino dos carpinteiros e, seguramente, carpinteiros que viriam da construção naval”, notando que “as estruturas de madeira necessárias à construção das abóbadas, os cimbres por exemplo, eram estruturas muito semelhantes às da construção naval”.
“Os motivos arquitetónicos e vegetalistas remetem-nos para os canteiros, para os mestres, que na pedra expressaram os seus planos. Os grafitos de jogos, por exemplo, permitem-nos especular como os trabalhadores passavam algum do seu tempo, o tempo de ócio”, adiantou.
Segundo o diretor, os grafitos “falam de uma mundividência de centenas de homens anónimos que deram o seu saber e experiência, sobretudo nos séculos XIV e XV, e ainda início do XVI, para a construção de um edifício ímpar”, onde se incluíam pedreiros, alvanéis, lavrantes ou vidraceiros.
“Ao mesmo tempo falam do seu quotidiano, dos seus interesses, e é isso tudo que torna o estudo dos grafitos muito aliciante e fundamental”, considerou.
Entre os estudiosos dos grafitos, destacou o historiador Saul António Gomes, a quem “não escapou, desde logo, a importância dos grafitos no contexto dos estudos batalhinos”.
“E Jorge Estrela [Angra do Heroísmo, 1944 – Leiria, 2015] fez um primeiro levantamento, análise e sistematização de uma parte dos grafitos, num estudo pioneiro e fundamental, que necessariamente é o ponto de partida para qualquer estudo e interpretação posteriores”, referiu.
Já “Orlindo Jorge tem continuado esse trabalho, com grande empenho, rigor e saber”, acrescentou.
Citando Jorge Estrela, Joaquim Ruivo assinalou que o estudo dos grafitos “ressurge como indispensável à compreensão de um tempo”, sendo “um discurso improvisado sobre a pedra”.
O diretor do mosteiro defendeu como necessários “o estudo epigráfico e leitura das dezenas ou centenas de assinaturas e frases que povoam as paredes dos dois claustros e das Capelas Imperfeitas”.