Há dez anos, um amigo do humorista Carlos Coutinho Vilhena suicidou-se. A amizade nasceu na infância, a tragédia deu-se na adolescência, quando a compreensão sobre estes casos pode ser limitada ou quase inexistente. Os anos foram passado e Carlos Coutinho Vilhena ficou com o momento na memória. Dedicou-se a projetos mais existencialistas, entre a realidade e a ficção, como o “Resto da Tua Vida”, mockumentary com o ator João André, que acabou em peça de teatro pelo país inteiro. Sketches, rádio e podcasts (“Conversas de Miguel” com Pedro Teixeira da Mota) e agora, outra vez, os palcos do teatro.

Dois anos depois, o comediante decidiu basear-se na história do amigo e criar “Síndrome de Lisboa”, com encenação de João André, textos de Coutinho Vilhena e Pedro Durão e um elenco (até ver) de duas pessoas: o próprio e Catarina Rebelo, que também esteve em “Clube de Felicidade”. “Queria contar a história dele, mas ainda não tinha encontrado o formato certo. Não queria fazê-lo para ajudar as pessoas, para dizer que é preciso estarem atentos à saúde mental. Foi um momento muito intenso durante alguns anos. Mas sei que é honesto, é a minha visão, não é a de quem se tenta suicidar, é a de quem está ao lado”, conta o humorista ao Observador. Estreia-se esta quarta-feira, 3 de maio, em Coimbra, e vai percorrer várias salas do país.

Antes de olhar para o conteúdo, vamos à forma. Poucas semanas antes de voltar a subir ao palco, Carlos Coutinho Vilhena está a tratar dos detalhes técnicos. Tal como aconteceu em “Conversas de Miguel”, que saltou do formato podcast para o “ao vivo”, a importância da construção visual não pode estar desligada daquilo que será representado. Há ensaios quase todos os dias, limam-se partes do texto. Mas o cenário tem de estar ao nível de um qualquer espectáculo internacional.

Nas ‘Conversas de Miguel’ as pessoas diziam-me que nunca tinham visto tanto investimento técnico. O público que me ouve só na rádio também tem de ser conquistado. Por isso, nesta reta final, estamos preocupados com isso. O público tem de perceber que demos o litro”, conta.

Se a encenação ainda está a ser aprimorada, todo o processo anterior sofreu uma pequena alteração, ainda que Coutinho Vilhena tenha mantido praticamente a mesma equipa da peça anterior.O objetivo, assume, é captar novos públicos. “Desta vez, preocupei-me com quem nunca viu nenhum trabalho meu. Quero que se sentem e não se sintam afastados. Quis escrever uma peça intemporal, sem ser pedante, se daqui a trinta anos alguém quiser pegar neste guião, pode fazê-lo. O objetivo era esse, até de ser possível repor a peça. Foi o projeto artístico onde fomos mais exigentes com o guião”, afirma o comediante. Não se sentindo com ator nem tendo formação, pensou primeiro em em ter alguém “mais a sério” no palco, no lugar que afinal assume em “Síndrome de Lisboa”. “Já fiz de Carlos e agora repito o papel. Sou mais dessa escola, dos atores fazerem deles próprios, de não serem o Romeu hoje e amanhã o Matias”, afirma.

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E porque é que quis falar sobre suicídio? Um tema transversalmente sensível no qual poucos ousam tocar, numa altura em que tudo o que é dito é muito escrutinado? O humorista quis fazer humor sobre terapia e não o contrário, pegar no lado de quem lida com casos de suicídio e não de quem se tenta suicidar. Catarina Rebelo, que tem formação em psicologia, faz de psicóloga que também perdeu alguém próximo na mesma situação.

É ficção, optámos mais pela parte artística do que a parte académica, mas ela também ajudou nesse sentido. Baseamo-nos na ideia de alguém que vive de perto com a possibilidade de uma tragédia assim. Como aprende e o que tem a aprender? Às vezes podemos não atender a última chamada e isso pode ter consequências gravíssimas”, diz.

Além da preparação artística e académica, o humorista falou com a família que passou por tudo isto. Queria trabalhar sobre algo “desafiante e complexo” — até porque é assim que tem guiado a sua carreira — mas não por estar numa procura de uma cura para os seus problemas. “Não, não estava à procura disso nem pretendo alertar o público. Se o fizer, melhor será, mas não é o objetivo. Mas se as pessoas sentirem algo, se se identificarem, se tiverem um arrepio e fizerem uma viagem interior, ainda bem”, conta.

Vilhena, que está sempre à procura de “algo novo para trabalhar”, não sente vontade de voltar aos espetáculos de stand-up. Quando lhe perguntamos se os humoristas portugueses estão a ficar cansados de fazer stand-up à maneira clássica, procurando outros formatos, desde mockumentaries a teatro, é pronto a responder: não, é pura necessidade.

Estamos num mercado pequeno e quem teve sucesso seguiu a mesma linha de montagem, que vai aos espetáculos ao vivo, a programas de atualidade política ou a sketches. Tenho vontade de fazer outras coisas, acho mais confortável não fazer séries ou peças, procurar outro tipo de produtos.”

Mas ir por outros caminhos. E longe do mainstream também se podem esgotar salas. Afinal, um humorista de Lisboa consegue vender bilhetes além capital. Várias datas pelo país estão, agora, esgotadas. O que não deixa de surpreendeu Coutinho Vilhena. “Com ‘Resto da Tua Vida’, as pessoas que nos viram na série seguiram-nos até à peça. Desta vez partimos já para o teatro. O público não ficou com receio, vão ao engano, espero que sejam surpreendidas.”