A Disney continua a servir-se do seu riquíssimo acervo animado para tentar compensar a seca de criatividade e a penúria de inspiração em que vive, pegando nos seus clássicos animados e transformando-os em filmes de imagem real e efeitos digitais. O mais recente, “A Pequena Sereia”, de Rob Marshall, consegue distorcer por completo o soturno conto de fadas de Hans Christian Andersen sobre a paixão condenada de uma sereia por um humano, e reformatar em registo menor a encantadora animação de longa-metragem homónima que John Musker e Ron Clements assinaram em 1989 e que ganhou os Óscares de Melhor Banda Sonora e Melhor Canção.   

Desta série de “remakes” caseiros, “A Pequena Sereia” é, até agora, o que está mais aconchegado à agenda ideológica dos nossos tempos, transpondo a história para uma latitude tropical e uma atmosfera de utopia, uma ilha multicultural onde toda a gente é feliz e se dá bem, do palácio real à praia, independentemente da origem étnica e da classe social. A sereia Ariel (interpretada por Halle Bailey, que tem uma voz muito agradável e um sorriso gaiato, e por aí se fica) é agora africana – ou caribenha, não fica bem claro – mas tem cabelo louro, e a diversidade chega também ao povo marinho ao qual ela pertence. O que cancela um dos temas centrais da história de Andersen, a diferença intransponível e a incompatibilidade entre as criaturas do mar e os humanos.

[Veja o “trailer” de “A Pequena Sereia”:]

Rob Marshall segue de muito perto o enredo da animação de 1989 e mantém as canções desta versão, acrescentando algumas novas (da autoria de Alan Menken, que assinou, com o falecido Howard Ashman, as da primeira “A Pequena Sereia”, e do inevitável Lin-Manuel Miranda), e que não estão nem por sombras à altura de “Under the Sea” ou “Kiss the Girl”. Os grandes números musicais não viajam muito bem da fita original para esta, e no que respeita ao ponto de vista visual, “A Pequena Sereia” é um desastre, falho de homogeneidade e harmonia expressiva, pela incapacidade de conseguir uma fusão convincente entre a imagem real, os atores e os efeitos gerados por computador e a integração daqueles no contexto digital (e dura, dura e dura, mais 50 minutos do que a fita de Musker e Clements).

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[Veja uma entrevista com Halle Bailey:]

O filme tem uma textura estranha e híbrida, algures a meio caminho entre o “realista” incerto e o sintético imperfeito. Quando está na água, Ariel parece uma figura de um jogo de vídeo, os seus três comparsas, o caranguejo-mordomo, o peixinho e a gaivota, são como bonecos de plástico toscamente animados, e a sequência que marca o clímax do filme, o combate nas águas tempestuosas entre o príncipe (o podão Jonah Hauer-King), Ariel e a Bruxa do Mar (Melissa McCarthy) é feia, baça, bagunçada e tem as costuras digitais à mostra, sendo indigna de um estúdio com os orçamentos, os meios tecnológicos, os talentos e a experiência da Disney (compare-se com a excelência da animação computacional de “O Livro da Selva”, de Jon Favreau, o melhor filme desta série).  

[Veja uma sequência do filme:]

“A Pequena Sereia” é uma mal-amanhada e indigesta caldeirada digital e multicultural, que se vai juntar a “Maléfica”, “A Bela e o Monstro”, “Aladdin”, “O Rei Leão”, “Mulan” e “Pinóquio” na já longa lista de falhanços destas novas versões recicladas, e crescente e controversamente politizadas, de tesouros da animação tradicional da Disney. Se não aparecer, como aconteceu nos anos 80, um novo Jeffrey Katzenberg que deite a mão ao estúdio e ao respetivo departamento de animação, o seu naufrágio criativo, comercial e de credibilidade vai continuar.