Esta é a história da amizade entre duas crianças nas Canárias: uma é a narradora, a outra é Isora, com quem a primeira mantém uma relação de obsessão e idolatria que não chega a ser disfarçada. Tal tem bastado para a autora ser comparada a Elena Ferrante, que, no cerne da sua tetralogia, pôs a relação entre Lenu e Lila. E se, de facto, há semelhanças no que toca à intensidade, quase ao vício uma da outra, a semelhança, em termos de estrutura, não vai muito além disso. Enquanto, em Ferrante, a dupla era um eixo que possibilitava o romance, ainda que com interesse, sendo as personagens apenas algumas das que compunham um bairro operário de Nápoles no pós-guerra, em Pança de burro o eixo principal e indispensável ao romance é mesmo esse. Ou seja, em Ferrante, o eixo Lenu-Lila possibilitava o romance. Aqui, o eixo narrador-Isora constitui-o.

Mesmo nesse eixo, verdade seja dita, é possível encontrar a mesma contraposição: Lenu não tinha medo, chocava pelo desplante, e o mesmo vai acontecendo com Isora. Passando da infância para a adolescência, dá-se o início do interesse sexual, e com isso vêm dois modos de ver: um mais recatado, outro totalmente impúdico, e essa falta de pudor chegará a servir de bisturi. Vindas do mesmo lugar, crescem de forma diferente, e a diferença choca a narradora. Também a compor a relação, há ainda um permanente desejo entre as duas, referido de forma quase periférica, mas evidente para o leitor. Tudo isto vai servindo para estimular a ideia de proximidade e, em última linha, de tensão que vai sendo formada entre as duas. Esta proximidade também agarra o leitor, com a ilusão de que pode aceder à intimidade alheia, servindo-se da leitura de uma prosa que realmente o mete em cena.

Além deste eixo, o contexto social também é operante na narrativa. Em Tenerife, salta à vista a diferença de classes. Para lá do turismo que condiciona os dias, a organização geográfica mostra o estado de vida: nos morros, vive a mão-de-obra dos ricos. A narradora, filha de pai operário e de mãe que limpa as casas de férias dos turistas, vai vendo a ilha como o lugar de declives, não físicos, mas sociais. Ao mesmo tempo, explora-se a questão do turismo como coisa que enforma as relações na ilha: aparece como sobrevivência, e a própria educação aparenta ser uma forma de encaminhar os alunos, futuros trabalhadores, para o que a terra em que vivem dá. Ou seja, aparenta ter um cunho voltado para a prestação de serviços, com a escola a voltar-se para as várias maneiras de transformar a terra em turismo para daí obter lucro. Aliás, a própria autora, em declarações à imprensa, afirmou encarar o livro como uma forma de ganhar consciência de classe. Em causa estará esse declive entre a Tenerife de todos os dias, de quem a habita, e a de quem a usa como postal de férias.


Título: “Pança de burro”
Autora: Andrea Abreu
Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Editora: Bertrand Editora

Páginas: 152

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Aqui não interessará tanto o olhar de turista, ou seja, a perspectiva sobre um mundo como coisa passageira, descuidando-se o impacto real dos movimentos de lazer. Ao invés disso, temos o outro lado, o que tem mais peso: o turismo visto a partir de dentro, de quem garante a limpeza para que a paisagem esteja livre e aprazível, de quem garante o prazer alheio à custa da destruição da própria lombar. Tudo num movimento de subserviência, mas subserviência necessária à manutenção do status quo: a utilização da ilha e da gente para gerar dinheiro, ainda que esse se acumule sempre nas mãos dos mesmos. O turismo como salvação é, afinal, uma ilusão que os de cima criam para os de baixo: a necessidade é deles para manterem a riqueza.

Um dos pontos mais impressionantes do romance é a utilização da língua, que não obedece ao padrão habitual, que não vai pela norma, que não vai pela discrição. E, assim, que não vai pela esterilização linguística. Pelo contrário, a prosa sabe permanentemente a oralidade, até pela parte do registo impresso: formas como “plise”, “beémedabliu”, “gaimebói”, constroem a voz narrativa e constroem também a intimidade das personagens, uma vez que bastam para que o leitor se sinta em cena, ou veja a cena, ou ganhe a crença de que o que tem em frente é uma voz real a contar-lhe uma história. E essa voz, por pormenores destes, garante a veracidade.

Com mão forte, a vida de todos os dias acontece: as telenovelas criam o imaginário, daí a usar-se os bonecos para encenar relações sexuais é um passo. Volta e meia, a questão da sexualização parece exagerada. Há uma preocupação excessiva com a ideia do crescimento dos pêlos púbicos ou de qualquer outro elemento que signifique uma transformação física ou o fim da infância. Ao mesmo tempo, a obsessão com os genitais, o número de vezes que são referidos, também soa a coisa desfasada. Outro dos problemas é uma insistência em questão escatológicas que nada acrescentam à narrativa nem à constituição das personagens. Aliás, poderiam fazê-lo numa ou noutra referência, quanto à última, mas, dado o número de aparições, o exagero macula a prosa, mói o leitor, e intui-se o objectivo de trazer para o campo da literatura a questão do nojo como elemento constituinte. Mas, sendo este elemento de passagem, de construção de veracidade, o leitor vê mais a estratégia do que a cena. Além disso, a opção acaba por fragilizar a composição orgânica, uma vez que o nojo é usado como coisa constante da narrativa, que, sendo forte, não precisa disto para nada, para efeito nenhum. Não era necessário nem choque nem nojo nem ausência de bloqueios, porque já tínhamos a originalidade da prosa. Para o leitor, tanta coisa, em vez de um ou outro apontamento, é um transtorno. E, com isto, a autora abdica da possibilidade de subtileza, e isto por sua vez faz com que o leitor perca espaço de acção: não lhe cabe indagar, reduz-se a possibilidade de interpretação, torna-se difícil que aja sobre o texto.

No meio da prosa limpa, com linguagem violenta, a narradora, mesmo partindo da relação central com Isora, vai mostrando o mundo à volta: outras personagens, as disparidades sociais, a dureza entre relações, até entre neta e avó. Andrea Abreu mete-se numa casa e conta-lhe a vida, mete-se numa sala de aula e conta-lhe a vida, e em geral tudo sabe a essencial porque tudo implica a sensação de proximidade. Nisso, a sua escrita parece cirúrgica no que concerne à informação dada: o quê e quando. No entanto, volta e meia, há uns capítulos que não encaixam nisto. A narrativa foge do rumo, e também foge do tom: aparecem pequenos trechos com informações quase periféricas em que se abdica de pontuação. Sabe a má opção por saber a experimentalismo. Ao fugir do tom, não se percebe para que serve. Não chega a mostrar versatilidade, porque fragiliza a coesão – de estrutura e de tom. E a mão da autora já era de tal forma firme que esta pequena volta estética era para lá de desnecessária. Quando o estilo deambula, como no capítulo “comer a isora”, há uma sensação de perda de coesão que não apresenta outro lado com o que quer que seja como ganho.

No entanto, são pequenos pormenores num romance que tem grandes méritos, e que prova a autora como capaz de concatenar os elementos da vida, num estilo original, numa utilização da língua que não segue a ideia da neutralização, tão prejudicial à criatividade artística. Em Andrea Abreu, cada página sabe a novidade, a originalidade, a voz narrativa acabadinha de criar. Só isso já vale quase tudo.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia