De um lado, o passado e o presente. Do outro, o presente e o futuro. João Almeida contou com grande apoio sobretudo nas últimas etapas desta Volta a Itália mas nada a comparar com a enorme falange de eslovenos que, aproveitando a proximidade da fronteira transalpina, fizeram uma autêntica invasão ao Monte Lussari para a decisão de todas as decisões de um dos ícones da modalidade no país. Não é único. Primoz Roglic, de 33 anos, é uma figura que há muito começou a dar alegrias à Eslovénia. Tadej Pogacar, de 24 anos, tem sido o maior destaque nos três últimos anos com mais vitórias grandes para o país. E foi num duelo entre ambos em 2020 que começa a explicação do dia de sonho que valeu a primeira conquista do Giro a Roglic.

O extraterrestre Roglic mostrou o orgulho que é ter um humano português como João: Almeida consegue primeiro pódio de sempre no Giro

Em 2020, ano que começou com uma vitória no Tour de l’Ain e fechou com a reconquista da Vuelta, o Tour era a grande aposta do corredor da Jumbo e tudo corria da melhor forma, chegando com cerca de um minuto de vantagem sobre Tadej Pogacar ao contrarrelógio com características muito específicas entre Lure e La Planche des Belles Filles ao longo de mais de 35 quilómetros. O esloveno mais novo até podia ter andamento para ganhar a etapa mas muito poucos acreditavam que o esloveno mais velho pudesse perder a camisola amarela. Foi mesmo isso que aconteceu, com Pogacar a colocar 1.56 minutos em Roglic para ficar com a liderança e garantir a primeira vitória numa grande volta. Foi das maiores derrotas de Primoz.

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A partir daí parecia haver quase uma maldição nas alturas chave para o corredor da Jumbo. Tinha na mesma as suas conquistas, multiplicava os azares. Em 2021, ano em que ganhou a medalha de ouro em Tóquio nos Jogos Olímpicos e reconquistou a Vuelta entre vitórias no Giro dell’Emilia e no Milão-Turim, teve uma queda grave na primeira semana do Tour e desistiu a menos de meio. Em 2022, onde começou com triunfos na Paris-Nice e no Critérium du Dauphiné, abandonou o Tour para recuperar de lesões após novas quedas e também não chegou ao fim da Vuelta depois de mais uma ida aparatosa ao asfalto. Este ano, mesmo sendo muito superior no Tirreno-Adriático e na Volta à Catalunha, havia o receio de que algo podia acontecer.

Na verdade, aconteceu. Primoz Roglic não evitou quedas nas duas semanas iniciais, estando envolvido por exemplo naquela escorregadela fatídica que tirou Tao Geoghegan Hart da prova com uma fratura da anca e que também levou Geraint Thomas ao chão. E também houve aquele dia em Monte Bondone em que se não fosse a ajuda de Sepp Kuss (o mais fiel dos escudeiros da Jumbo) a diferença para Thomas e João Almeida poderia ficar a uma margem inalcançável. Mais: os primeiros sinais antes da chegada ao Val di Zoldo não eram os melhores, numa imagem que não demoraria a revelar-se apenas um mero bluff. No entanto, e após o ataque sem resultados a Thomas em Tre Cime di Lavaredo, o melhor estava mesmo para vir.

Parecia que estava escrito que a redenção da desilusão em La Planche des Belles Filles chegaria numa etapa de cronoescalada que começava em Tarvisio, cidade onde Roglic se tinha sagrado campeão mundial júnior por equipas de esqui. Isso mesmo, esqui, a modalidade onde esteve até começar no ciclismo em 2013.

Nascido em Trbovlje, Roglic cresceu entre montanhas e cedo começou a entrar em competições de esqui, tendo conseguido o título em 2007 depois de, no ano anterior, já ter terminado no terceiro lugar na prova por equipas. Custou. Doeu. Umas semanas após o título, sofreu uma grave queda que o deixou inconsciente. Temeu-se o pior, foi de helicóptero para o hospital mas, traumatismos à parte, conseguiu recuperar bem. No entanto, e quando tinha 22 anos, colocou em perspetiva até onde poderia ir no esqui e dedicou-se ao amor pelo ciclismo (Remco Evenepoel fez o mesmo mas deixando o futebol). Pela Adria Mobil, entre 2013 e 2015, ganhou o Tour do Azerbaijão e o Tour da Eslovénia. A partir de 2016, na Jumbo, tornou-se um dos melhores, várias vezes “o” melhor: três vitórias na Vuelta com dez etapas ganhas, três vitórias em etapas no Tour, quatro etapas do Giro até à primeira vitória, sucessos no Tirreno-Adriático, Critérium du Dauphiné, Paris-Nice, Volta à Romândia, Volta ao Algarve, Liège–Bastogne–Liège, Giro dell’Emilia ou Milão–Turim.

Agora, mais do que a primeira vitória na classificação geral do Giro, foi a forma como chegou à camisola rosa que impressionou: tinha uma vantagem muito curta sobre Thomas no primeiro ponto de controlo em zona ainda plana, começou a abrir na subida, teve um problema mecânico numa zona de maior trepidação que o obrigou a trocar de bicicleta num terreno inclinado, cerrou os dentes para vingar de vez os azares próprios para ter um dia histórico. Foi isso que aconteceu. E Thomas, que tinha uma vantagem pouco abaixo dos 30 segundos, saudou de forma resignada aquele que foi o grande dominador da cronoescalada enquanto todos os elementos da Jumbo faziam a festa e mostravam a importância que é ter uma equipa unida.

“É algo verdadeiramente incrível. Não é apenas a vitória mas especialmente pelas pessoas e pela energia que se viveu. É um momento para viver e recordar. O que aconteceu com a bicicleta? A corrente saltou, faz parte. Coloquei-a no sítio e continuei. Claro que não queremos que isto aconteça mas podia sempre colocá-la no sítio e seguir. Tinha as pernas, as pessoas, eles deram-me watts extra. Estava a voar e a desfrutar”, referiu após a grande vitória no Monte Lussari que iniciou a festa consumada este domingo em Roma e que teve como protagonista paralelo o filho, que não demorou a tomar conta das câmaras e das objetivas.