Os americanos têm uma expressão para eventos, pessoas ou objetos que mudam a parada, alteram a organização das casas, a decoração do cérebro, o que não é de admirar – os americanos têm expressões para tudo. Neste caso, usam “game changer“: Michael Jordan foi um game changer na forma como se jogava básquete, mas também em como um desportista pode capitalizar na sua fama; o “Tubarão”, de Spielberg, foi um game changer, ao criar o blockbuster que, num fim-de-semana, já recuperou todo o dinheiro investido; Madonna foi uma game changer – a partir dela, as estrelas pop femininas passaram a ser vistas como rainhas do seu castelo, donas do seu quintal, o corpete que põe o pão na mesa enquanto escala as tabelas de vendas. A série “Os Sopranos” foi um game changer, ao elevar a televisão a patamares cinematográficos, dando espaço a personagens complexas, que não foram escritas para agradar.
A própria expressão game changer é um game changer, porque antes de se chamar game changer aos acontecimentos e objetos que alteram a abertura do nosso diafragma, dizia-se que algo era earth shatering; que provocara um paradigma shift; que fulano era um trailblazer. Como outras expressões que se tornam ubíquas, game changer foi ficando puída, desgastada, perdendo o seu peso: hoje há, em atividade, uns 17 jogadores da NBA que são game-changers; 24178 discos que são ou foram game changers; apps que são game changers e até usuários de apps que são game changers.
Uma das funções de quem produz discurso é produzir discurso; a outra é produzir discurso em que se anuncie ao mundo uma forma até então desconhecida de observar a humanidade; o número de objetos e eventos que realmente mudaram alguma coisa ser limitado provoca a elevação de objetos bastante razoáveis à categoria de obra-prima, porque há 7 mil caracteres, ou 5 minutos de TV para preencher.
[“Loungin'”: Guru com Donald Byrd:]
O que não invalida a existência de obras-primas que impõem um antes e um depois – e Jazzmatazz, que faz 30 anos por estes dias, é um desses casos: na estreia de Guru a solo, o MC olhou para os caixotes onde se encerravam os seus géneros musicais preferidos e decidiu que era melhor se não houvesse caixotes, se ficasse tudo desarrumado pela sala, se o passado se envolvesse com o presente, parindo o futuro.
Não era suposto, pelo menos desde os dias das big bands, que o jazz fizesse dançar assim; não era suposto que o hip-hop fosse suave e sedutor; não era suposto que o funk travasse amizade com o jazz; e não era suposto que a conjugação destas peças fizesse sentido, muito menos para um branco de ancas quadradas – mas foi exatamente na Europa que o álbum foi recebido de imediato como uma dádiva divina: na Alemanha, na Holanda, na Suécia ou no Reino Unido, tanto o álbum como os singles chegaram ao top50 das tabelas locais. Não é dinheiro massivo, é dinheiro de culto alargado – e que se foi alargando ainda mais com o tempo.
Guru não era propriamente um desconhecido quando lançou Jazzmatazz — Daily Operation, dos Gang Starr, projeto que mantinha a meias com o produtor DJ Premier, fora platina em 1992; não é preciso um grande esforço para convencer quem quer que seja da valia dos Gang Starr, basta ir ao Youtube ou ao Spotify e ouvir “Mass Appeal”, uma faixa em que Guru satiriza os artistas que alteram a sua arte para a tornar mais comercial – ironicamente, a canção tornou-se um êxito. (Outra boa faixa para se inteirarem do universo dos Gang Starr: “My advice 2 you”. Escusam de agradecer, a minha generosidade é quase mítica.)
Nascido em Roxbury, Massachusetts, em 1961, Guru cresceu a ouvir jazz e soul e apaixonou-se pelo hip-hop quando o género surgiu, no final dos anos 70, início dos 80. O MC conheceu DJ Premier em Boston, na década de 1980, e encontrou nele uma espécie de gémeo musical complementar: ambos adoravam explorar discos antigos de jazz, soul e funk, ambos queriam fazer hip-hop, Premier tinhas as skills técnicas, Guru tinha as palavras, as rimas e o flow: o casamento perfeito.
A linguagem que criaram – lenta, sedutora, baseada em samples escolhidos a dedo e beats imaginativos – dava a Guru o espaço para fazer-se ouvir sem ter de ser agressivo; o espaço para seduzir. Mas criar discos extraordinários, com uma legião de fãs fidelíssimos e uma bela conta bancária não era suficiente para Guru: o seu amor pelo jazz era de tal monta que ele queira fazer um disco em que o jazz não fosse apenas um poço ao qual se ia buscar uma pequena amostra para, a partir desta, se criar uma nova canção. Aquilo com que Guru sonhava era uma linguagem única, como se o jazz, a soul, o funk, o hip-hop tivessem acabado de nascer agora e não fossem sequer gémeos mas um só.
[“No Time to Play”, com Ronny Jordan e D.C. Lee:]
Olhar para a lista de músicos que foram convidados a participar em Jazzmatazz é um bocado como recordar os onzes titulares de Guardiola quando foi campeão europeu pelo Barça: não há ali ninguém que não fosse o melhor na sua posição: temos Branford Marsalis, Donald Byrd, Courtney Pine – caramba, temos o grande Roy Ayers que é, claramente, uma influência neste tipo de som aveludado. E o que Roy Ayers faz: “Take a look (at yourself)” é quase seda, com o xilofone a deslizar por entre a batida, as palmas, as rimas de Guru: por cima de uma estrutura hip-hop dançável (muito dançável, mesmo), vem o jazz improvisar e desarrumar o quarto, a cozinha, partir a casinha toda.
A batida não é negligenciável: não há uma canção em Jazzmatazz que não provoque um ligeiro embalo, um menear de anca, por vezes suave como uma brisa veranil, outras ligeiramente mais sexual, mas o raio do balanço era infeccioso – o hip-hop já existia há mais de uma década, até os brancos tinham aprendido que era permitido usar o rabo e Jazzmatazz surgiu no exato momento em que aprendemos a usá-lo.
Essa batida não está lá por acaso, faz parte do conceito que Guru tinha para Jazzmatazz: fazer um disco com uma banda ao vivo, composta por músicos de jazz, mas que tivesse elementos de produção de hip-hop e fosse rapado. (Quer dizer, a espantosa Dea Davenport não rapa, só canta, quem rapa é Guru.) E tudo aquilo causava espanto e fazia sentido ao mesmo tempo – como quando vemos uma casa de Gaudi pela primeira vez e, depois do choque inicial que nos impede de falar, finalmente o cérebro faz clique e nos ocorre “Claro, é óbvio que todas as casas deviam ser assim, como não”.
[ouça Jazzmatazz na íntegra através do Spotify:]
Talvez Jazzmatazz não seja um game changer isolado – talvez faça parte de um momento histórico em que o hip-hop saiu da trincheira, do gueto, tornou-se ambicioso, apercebeu-se das imensas possibilidades ao seu dispor, do quão espantoso era o passado em que assentava: disco após disco após disco, dos De La Soul aos Us3, o universo do hip-hop foi-se expandindo, brincando ao psicadélico, ao jazzy, à música de dança – de repente o hip-hop era “hip-hop de fusão”, e foi assim, graças a estes discos, que toda uma geração (a que tinha entre 15 e 25 anos nessa altura) descobriu o jazz e a soul e deu por si a pensar que afinal podia haver flautas numa canção e isso ser bom e dançável.
Tudo naquela época parecia possível – e tudo começou aqui, na flauta da espantosa “Sights in the city”, no magnífico piano elétrico de “Down the backstreets”, na guitarrinha funky de “Trust me”. Jazzmatazz não vendeu aos milhões – plantou uma sementinha e deixou que as gerações futuras recolhessem os frutos. Kendrick Lamar, Common, Kamasi Washington, todos eles são fãs de Jazzmatazz e seguem a cartilha de Guru: o passado não está morto, na realidade, o passado não é sequer passado, basta estudá-lo, identificá-lo no presente, sentá-lo ao nosso lado e viajar com ele para o futuro. Guru morreu em 2010, aos 48 anos, vítima de um mieloma. O disco prosseguiu caminho. E trinta anos depois, Jazzmatazz soa a daqui a trinta anos.