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30 anos depois, "Jazzmatazz" de Guru ainda é o futuro

Este artigo tem mais de 6 meses

Não era suposto que o jazz, o hip hop e o funk encaixassem desta maneiraPelo menos até 1993, quando metade dos Gang Starr decidiu mudar as regras do jogo. Ainda hoje o celebramos como visionário.

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Guru (nascido Keith Edward Elam) morreu em 2010, aos 48 anos, vítima de um mieloma

Redferns

Guru (nascido Keith Edward Elam) morreu em 2010, aos 48 anos, vítima de um mieloma

Redferns

Os americanos têm uma expressão para eventos, pessoas ou objetos que mudam a parada, alteram a organização das casas, a decoração do cérebro, o que não é de admirar – os americanos têm expressões para tudo. Neste caso, usam “game changer“: Michael Jordan foi um game changer na forma como se jogava básquete, mas também em como um desportista pode capitalizar na sua fama; o “Tubarão”, de Spielberg, foi um game changer, ao criar o blockbuster que, num fim-de-semana, já recuperou todo o dinheiro investido; Madonna foi uma game changer – a partir dela, as estrelas pop femininas passaram a ser vistas como rainhas do seu castelo, donas do seu quintal, o corpete que põe o pão na mesa enquanto escala as tabelas de vendas. A série “Os Sopranos” foi um game changer, ao elevar a televisão a patamares cinematográficos, dando espaço a personagens complexas, que não foram escritas para agradar.

A própria expressão game changer é um game changer, porque antes de se chamar game changer aos acontecimentos e objetos que alteram a abertura do nosso diafragma, dizia-se que algo era earth shatering; que provocara um paradigma shift; que fulano era um trailblazer. Como outras expressões que se tornam ubíquas, game changer foi ficando puída, desgastada, perdendo o seu peso: hoje há, em atividade, uns 17 jogadores da NBA que são game-changers; 24178 discos que são ou foram game changers; apps que são game changers e até usuários de apps que são game changers.

Uma das funções de quem produz discurso é produzir discurso; a outra é produzir discurso em que se anuncie ao mundo uma forma até então desconhecida de observar a humanidade; o número de objetos e eventos que realmente mudaram alguma coisa ser limitado provoca a elevação de objetos bastante razoáveis à categoria de obra-prima, porque há 7 mil caracteres, ou 5 minutos de TV para preencher.

[“Loungin'”: Guru com Donald Byrd:]

O que não invalida a existência de obras-primas que impõem um antes e um depois – e Jazzmatazz, que faz 30 anos por estes dias, é um desses casos: na estreia de Guru a solo, o MC olhou para os caixotes onde se encerravam os seus géneros musicais preferidos e decidiu que era melhor se não houvesse caixotes, se ficasse tudo desarrumado pela sala, se o passado se envolvesse com o presente, parindo o futuro.

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Não era suposto, pelo menos desde os dias das big bands, que o jazz fizesse dançar assim; não era suposto que o hip-hop fosse suave e sedutor; não era suposto que o funk travasse amizade com o jazz; e não era suposto que a conjugação destas peças fizesse sentido, muito menos para um branco de ancas quadradas – mas foi exatamente na Europa que o álbum foi recebido de imediato como uma dádiva divina: na Alemanha, na Holanda, na Suécia ou no Reino Unido, tanto o álbum como os singles chegaram ao top50 das tabelas locais. Não é dinheiro massivo, é dinheiro de culto alargado – e que se foi alargando ainda mais com o tempo.

Guru não era propriamente um desconhecido quando lançou Jazzmatazz — Daily Operation, dos Gang Starr, projeto que mantinha a meias com o produtor DJ Premier, fora platina em 1992; não é preciso um grande esforço para convencer quem quer que seja da valia dos Gang Starr, basta ir ao Youtube ou ao Spotify e ouvir “Mass Appeal”, uma faixa em que Guru satiriza os artistas que alteram a sua arte para a tornar mais comercial – ironicamente, a canção tornou-se um êxito. (Outra boa faixa para se inteirarem do universo dos Gang Starr: “My advice 2 you”. Escusam de agradecer, a minha generosidade é quase mítica.)

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Guru e DJ Premier: os Gang Starr em 1998

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Nascido em Roxbury, Massachusetts, em 1961, Guru cresceu a ouvir jazz e soul e apaixonou-se pelo hip-hop quando o género surgiu, no final dos anos 70, início dos 80. O MC conheceu DJ Premier em Boston, na década de 1980, e encontrou nele uma espécie de gémeo musical complementar: ambos adoravam explorar discos antigos de jazz, soul e funk, ambos queriam fazer hip-hop, Premier tinhas as skills técnicas, Guru tinha as palavras, as rimas e o flow: o casamento perfeito.

A linguagem que criaram – lenta, sedutora, baseada em samples escolhidos a dedo e beats imaginativos – dava a Guru o espaço para fazer-se ouvir sem ter de ser agressivo; o espaço para seduzir. Mas criar discos extraordinários, com uma legião de fãs fidelíssimos e uma bela conta bancária não era suficiente para Guru: o seu amor pelo jazz era de tal monta que ele queira fazer um disco em que o jazz não fosse apenas um poço ao qual se ia buscar uma pequena amostra para, a partir desta, se criar uma nova canção. Aquilo com que Guru sonhava era uma linguagem única, como se o jazz, a soul, o funk, o hip-hop tivessem acabado de nascer agora e não fossem sequer gémeos mas um só.

[“No Time to Play”, com Ronny Jordan e D.C. Lee:]

Olhar para a lista de músicos que foram convidados a participar em Jazzmatazz é um bocado como recordar os onzes titulares de Guardiola quando foi campeão europeu pelo Barça: não há ali ninguém que não fosse o melhor na sua posição: temos Branford Marsalis, Donald Byrd, Courtney Pine – caramba, temos o grande Roy Ayers que é, claramente, uma influência neste tipo de som aveludado. E o que Roy Ayers faz: “Take a look (at yourself)” é quase seda, com o xilofone a deslizar por entre a batida, as palmas, as rimas de Guru: por cima de uma estrutura hip-hop dançável (muito dançável, mesmo), vem o jazz improvisar e desarrumar o quarto, a cozinha, partir a casinha toda.

A batida não é negligenciável: não há uma canção em Jazzmatazz que não provoque um ligeiro embalo, um menear de anca, por vezes suave como uma brisa veranil, outras ligeiramente mais sexual, mas o raio do balanço era infeccioso – o hip-hop já existia há mais de uma década, até os brancos tinham aprendido que era permitido usar o rabo e Jazzmatazz surgiu no exato momento em que aprendemos a usá-lo.

Essa batida não está lá por acaso, faz parte do conceito que Guru tinha para Jazzmatazz: fazer um disco com uma banda ao vivo, composta por músicos de jazz, mas que tivesse elementos de produção de hip-hop e fosse rapado. (Quer dizer, a espantosa Dea Davenport não rapa, só canta, quem rapa é Guru.) E tudo aquilo causava espanto e fazia sentido ao mesmo tempo – como quando vemos uma casa de Gaudi pela primeira vez e, depois do choque inicial que nos impede de falar, finalmente o cérebro faz clique e nos ocorre “Claro, é óbvio que todas as casas deviam ser assim, como não”.

[ouça Jazzmatazz na íntegra através do Spotify:]

Talvez Jazzmatazz não seja um game changer isolado – talvez faça parte de um momento histórico em que o hip-hop saiu da trincheira, do gueto, tornou-se ambicioso, apercebeu-se das imensas possibilidades ao seu dispor, do quão espantoso era o passado em que assentava: disco após disco após disco, dos De La Soul aos Us3, o universo do hip-hop foi-se expandindo, brincando ao psicadélico, ao jazzy, à música de dança – de repente o hip-hop era “hip-hop de fusão”, e foi assim, graças a estes discos, que toda uma geração (a que tinha entre 15 e 25 anos nessa altura) descobriu o jazz e a soul e deu por si a pensar que afinal podia haver flautas numa canção e isso ser bom e dançável.

Tudo naquela época parecia possível – e tudo começou aqui, na flauta da espantosa “Sights in the city”, no magnífico piano elétrico de “Down the backstreets”, na guitarrinha funky de “Trust me”. Jazzmatazz não vendeu aos milhões – plantou uma sementinha e deixou que as gerações futuras recolhessem os frutos. Kendrick Lamar, Common, Kamasi Washington, todos eles são fãs de Jazzmatazz e seguem a cartilha de Guru: o passado não está morto, na realidade, o passado não é sequer passado, basta estudá-lo, identificá-lo no presente, sentá-lo ao nosso lado e viajar com ele para o futuro. Guru morreu em 2010, aos 48 anos, vítima de um mieloma. O disco prosseguiu caminho. E trinta anos depois, Jazzmatazz soa a daqui a trinta anos.

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