Na criação de um romance, a maior dificuldade costuma ser criar vida a partir do nada. Usando os fragmentos da vida, há que fazer uma coisa nova, que exista apenas ali, não como mero reflexo da realidade, mas como realidade em si – e analisável como tal. Neste sentido, a priori, Pat Barker já teria, na ida para este romance, a vida facilitada: o enredo já existia (e que enredo); não se punha a questão de calibrar uma história, uma verdade; a autora não precisava convencer o leitor de que não estava a ser enganado enquanto o enganava. Em vez disso, ao partir de uma história já conhecida, já feita, o desafio a que se propôs foi outro: vê-lo de outro ângulo, criar luzes novas sobre a mesma coisa.
Com isso, As Mulheres de Tróia é mais uma busca de uma perspectiva do que a criação de fios narrativos. Não é, claro, que estes não façam parte da tarefa: ao mudar o cerne da história, a coesão teve na mesma de estar lá. E, partindo de tudo isto, Pat Barker foi envolvente e competente.
Da Ilíada, conhecem-se mais os homens em batalha, os músculos a lutar contra os músculos, a história da guerra como história masculina. Neste cenário, as mulheres assumem um papel secundário: uma mãe deste, outra escrava daquele, outra recompensa. Olhando para a história da literatura, poucos exemplos poderão chegar aos calcanhares da história de Aquiles, quanto mais rivalizar com ela. Sendo um dos dois principais poemas da Grécia Antiga, juntamente com a Odisseia, ainda hoje é dos grandes baluartes da tradição literária ocidental.
Título: “As mulheres de Troia”
Autora: Pat Barker
Editora: Quetzal
Tradução: Rita Almeida Simões
Páginas: 344
Aqui temos o décimo ano da guerra de Tróia, com incidência na ira de Aquiles, que quer vencer Agamemnon, que comanda os exércitos gregos em Tróia. A figura de Aquiles é predominante, sendo este a levar a morte a Hector, príncipe de Tróia. E, de Menelaus a Paris, a narrativa vai girando entre espadas e sangue. Às mulheres, cabe o papel de ver ou recompensar. Partindo daqui, Pat Barker fez outra leitura do livro – e com uma nova leitura fez um novo livro. As Mulheres de Troia não muda a história original, mas acrescenta-lhe um olhar, entra em cabeças até então atiradas para canto, procura motivações e sensações, cogitando-as e criando-as, dando aos leitores um novo romance, e também este coeso.
Pat Barker parte do ponto em que Tróia está prestes a cair. Amontoados num cavalo de madeira, os gregos preparam-se para desferirem o seu golpe. Uma vez conquistada Tróia, podem regressar a casa, levando nas mãos a recompensa: para além do ouro e das armas roubadas, as mulheres roubadas como troféus. Mas, sem vento favorável que lhes conduza o navio a casa, acampam à entrada da cidade destruída. Estes dias de limbo moem, os desentendimentos ganham corpo, a suspeita ganha força entre quem lá está.
Neste cenário, Pat Barker começa a voar. Briseida, escrava de Aquiles, passa a ter discurso de primeira pessoa e, ao criar-se a cabeça dela, vê-se o outro lado da cama de Aquiles, começando a delinear-se o plano para uma vingança em tempos de paz, que, naquela situação, não são mais plácidos do que os de guerra. E aqui vê-se Aquiles não como herói de guerra – pelo papel que tem para a história –, mas como o homem que era no dia-a-dia, sendo comparado pela vida que permitia:
Como mulher de Álcimo, eu levava uma vida muito mais isolada e restrita do que quando era troféu de honra de Aquiles. Já não servia vinho aos homens durante a ceia no salão e a anarquia que reinava no acampamento significava que me era mais difícil estar com amigas.” (p. 51)
Com isto, o foco de Barker está na construção da dimensão psicológica das personagens. Ao termos toda a história envolvente da Ilíada, temos ainda uma visão a partir de cabeças, através da qual se permite uma construção linear que dá forma a uma perspectiva. Há suposições coerentes que, sem espinhas, aguentam o romance até ao fim – sempre sem o escusado, sempre sem romantização, sempre sem tentativas de heroísmo. Desta forma, o romance de Parker sabe à própria vida. A naturalização da violência não soa a coisa desfasada, porque o ambiente era o da guerra. Leia-se:
A luz das candeias a que Helena trabalhava derramava-se-lhe inteira no rosto, mas não foi aquela perfeição familiar que me despertou a atenção: foi o colar de hematomas que lhe rodeava a garganta. Tons variados, reparei – infelizmente, sou entendida na matéria –, dedos furiosos que tinham deixado desde marcas vermelhas a azuis e negras, passando pelo amarelo-mosqueado e o rosto das lesões mais antigas. Todas no pescoço e na garganta – ele não lhe tocara no rosto. Estrangulava-a enquanto a fodia. O costume.” (p. 58)
É nisto que a prosa de Pat Barker voa: ao escrever sem pó de arroz, expõe a brutalidade, sem precisar de sentimentalismos que a expliquem. A sua mão nunca perde o norte, o seu ritmo nunca perde o tom. A prosa flui de forma escorreita até ao fim do livro, elegante e pungente no mesmo movimento. A autora tem a capacidade de, com meia dúzia de traços – ou frases –, traçar um cenário inteiro, e o leitor vê o plano de fundo e o plano individual ao mesmo tempo. De imagem em imagem, a narrativa vai criando pressa, porque cabe ao leitor a vontade, assegurada, de escrutinar as personagens e de saber como são as novas lentes.
Ao focar-se nas personagens femininas que sobreviveram à guerra de Tróia, Barker encara a história e a História, dando-lhes rosto. Em vez de uma frase que veicula apenas conteúdo informativo, temos frases que veiculam psiques e perspectivas. Partindo de uma história sobejamento conhecida, a autora fez o mais difícil: fez com que esta fosse vista como que pela primeira vez. Assim, conseguiu entusiasmar e agarrar o leitor, servindo-se de um estilo prosaico que, por si só, é uma arma de manipulação de interesse.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia