As escutas telefónicas fortuitas que envolvem o primeiro-ministro ficaram nos autos do processo do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). As mais de 20 escutas foram validadas por dois presidentes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no âmbito do processo que está na origem da demissão de António Costa — e, ao contrário do que o Observador noticiou, não foram enviadas para o STJ.

A razão para isso é simples de explicar: as escutas têm a ver com os segmentos da investigação relativos ao lítio e ao hidrogénio, enquanto que a certidão extraída pelo DCIAP e enviada pela Procuradoria-Geral da República para o serviço do Ministério Público do Supremo Tribunal de Justiça está única e exclusivamente centrada no dossiê do data center de Sines.

“Já te disse: falaremos disso mais tarde!” Mais de 20 escutas telefónicas que envolvem António Costa foram juntas ao processo

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Acresce que os factos imputados aos cinco arguidos que foram detidos esta terça-feira (Lacerda Machado, Vitor Escária, Rui Oliveira Neves, Afonso Salema e Nuno Mascarenhas) estão também única e exclusivamente relacionados com o dossiê do data center. Isto apesar de os mandados de busca relativos às mais de 40 buscas judiciais realizadas esta semana conterem informação sobre os restantes segmentos da investigação: lítio e hidrogénio.

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Recorde-se que, tal como o Observador noticiou, três procuradores que investigam o processo que provocou a demissão do primeiro-ministro determinaram que existem mais de 20 escutas telefónicas que ligam António Costa aos factos sob investigação.

Estas escutas, que não foram realizadas diretamente ao telefone do primeiro-ministro, mas que resultam de conhecimento fortuito (por Costa ter falado com alguém que estava sob escuta), terão ocorrido entre o dia 11 de novembro de 2020 e este ano, inclusive.

Estas conversas de António Costa aconteceram com os principais suspeitos do processo, nomeadamente com o chefe de gabinete Vítor Escária,  com o “melhor amigo” Diogo Lacerda Machado e com o atual ministro João Galamba — todos constituídos arguidos nos autos do DCIAP, sendo que Lacerda e Escária estão sob detenção judicial e a aguardar primeiro interrogatório para que lhes sejam decretadas medidas de coação.

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Mas não só. Conversas entre o ex-ministro do Ambiente João Matos Fernandes e António Costa sobre as “declarações de impacto ambiental” que estão sob suspeita de irregularidade também foram consideradas relevantes para a investigação criminal. Os telefonemas aconteceram em períodos distintos — os primeiros quando Matos Fernandes ainda era ministro do Ambiente e as restantes já com o engenheiro civil fora do Executivo. Matos Fernandes não é arguido, mas é considerado suspeito pelo Ministério Público dos crimes de corrupção passiva e de prevaricação.

Contactado pelo Observador, o primeiro-ministro diz desconhecer as escutas em questão. “Não sei a que conversas se referem”, garante António Costa, acrescentando: “Não comento processos judiciais, muito menos que desconheço em absoluto”.

Recorde-se que, tal como o Observador avançou, o STJ interpreta que ocorreu em 2007 uma mudança de paradigma legal na validação das escutas telefónicas. Isto é: a decisão do juiz de instrução criminal (que é o papel processual que o presidente do STJ desempenha neste caso) de ordenar a destruição de escutas telefónicas deixou de se fundamentar apenas no critério da relevância para a prova. A lei passou a impor dois critérios para a destruição de escutas: elas teriam que ser manifestamente estranhas ao processo e teriam que dizer respeito a matérias abrangidas por segredo de Estado.

Assim, e mesmo considerando que algumas conversas eram manifestamente estranhas ao processo, o vice-presidente Nuno Gonçalves entendeu que o despacho de Joaquim Piçarra deveria ser revogado e todas as escutas telefónicas mantidas nos autos do processo em investigação por não estarem abrangidas pelo segredo de Estado.