Quando o Observador esteve, este ano, por Cannes, deu de caras com um jovem realizador português numa das secções do Marché du Film, onde a indústria do cinema aproveita para fazer os melhores negócios do ano. Era António Sequeira, um jovem realizador português que andava à procura de financiamento para terminar o seu Autumn, depois de um punhado de curtas-metragens que foram fazendo um percurso interessante para um rapaz de 28 anos que andou a estudar em Londres.
Passaram-se alguns meses e, de novo, António Sequeira surgiu nas sessões de pitch do Fest, em Espinho, porque a sua história sobre uma família de Baião que vê o filho emigrar e, a partir daí, se vai descosendo individualmente (entre aquilo que vão ser sem uma das suas peças centrais e aquilo que não foram), ainda precisava de uma ajuda monetária na pós-produção. No final de novembro, Autumn, que é, na verdade, A Minha Casinha, atravessou o Atlântico para ser premiado pelo público no Festival de Cinema de Austin, nos Estados Unidos da América. Agora, estreia-se nas salas portuguesas (esta quinta-feira, 14 de dezembro).
“Esta é a minha tentativa de regressar a casa e ver se consigo fazer cinema cá”, confessa-nos, depois de ter sido sistematicamente recusado pelo Instituto de Cinema e Audiovisual para os apoios. Será que o seu melodrama totalmente nacional conseguirá romper a tradicional falta de espectadores em 2023, só alcançada por Pôr do Sol: O Mistério do Colar de São Cajó, com mais de 110 mil espectadores?
[o trailer de “A Minha Casinha”:]
O guião de A Minha Casinha tem ressonância na memória de qualquer português que já teve um familiar a abalar para fora à procura de uma vida melhor. Estão lá as canções, não fosse o título do filme o nome de um clássico (primeiro na voz de Milú, mais tarde feito sucesso intemporal pelos Xutos & Pontapés). Estão lá os ditados populares, as refeições, o Portugal do interior, a ruralidade. Está lá o filho (Salvador Gil), que vai estudar medicina para Londres e volta de estação em estação — o filme foi rodado cronologicamente durante um ano. Está lá a irmã (Beatriz Frazão), que quer estudar design, que fica com a família. O pai (Miguel Frazão), politicamente incorreto, sempre de piada na mão, duro de roer. A mãe (Elsa Valentim) com o coração na boca, presa às lides domésticas e a um trabalho que já não gosta.
Este filme não é A Gaiola Dourada (2013) de Ruben Alves, comédia estridente, de grande sucesso comercial, sobre uma família em França. E também não é um Listen, de Ana Rocha de Sousa, drama de aflições de portugueses a tentar sobreviver no Reino Unido. Coloca-se, portanto, entre um género português que deita cá para a fora as suas raízes de um jeito mais dramático mas leve e uma tentativa de uma linguagem mais autoral, centrada na narrativa, algo que António Sequeira não encontra muito no cinema português. “É um filme indie, mistura drama com comédia, acho que o público está muito cansado e farto de ver o cinema português que não é feito para eles mas sim para festivais, ainda que tenha valor óbvio. Cá existem os filmes que criam uma ideia de tradição extremamente comerciais e os artísticos, que não se preocupam com a audiência mas que têm dinheiros públicos. Nós queremos chegar ao intermédio”, diz.
Essa intenção, acompanhada de uma análise à filmografia portuguesa que não estará livre de críticas, é experimentada pelo realizador através de uma dinâmica entre drama e comédia, onde cada elemento da família que protagoniza a narrativa, mostra, quando o filho regressa, da primavera ao verão, quão diferente está. O filho já vem tatuado, bebe álcool, não quer saber mais do colo da mãe. A filha fica ciumenta da nova namorada. O pai refila com a mãe porque deixou de trabalhar num lar para abrir o próprio negócio. Todos estes clichés nacionais — que são melhor ou menos bem trabalhados, dependendo do momento em que a família se encontra — inserem-se no imaginário que António Sequeira tem sobre o que é, afinal, um filme português. “As pessoas estão à procura de filmes nacionais com que se possam identificar. Focamo-nos muito no passado, há muito cinema de época, algum bom, mas depois há uma falta de identificação. Nunca tentei fazer um filme universal para conseguir ter sucesso lá fora. Há piadas que nem dão para traduzir”, assume.
Esta portugalidade, muitas vezes levada ao exagero em A Minha Casinha, roçando outros filmes entretanto refeitos, como o Pátio das Cantigas (2015, Leonel Vieira), podia ser uma barreira para esta primeira longa-metragem de António Sequeira não conseguir ir além fronteiras. Mas o realizador acredita que não. “Estávamos receosos quando o filme passou no festival nos EUA, porque era legendado, porque tinha elementos tipicamente portugueses, mas o público riu-se e chorou. Ficaram muito interessados. Afinal, era indiferente o filme ser português ou não”, refere.
Este é o primeiro grande projeto que conseguiu realizar. Alguns guiões ficaram na gaveta. Outros foram vendidos. Além de um punhado de curtas-metragens com algum reconhecimento, António Sequeira também já realizou a série Instaverso, através do RTP Lab. Todo o processo de A Minha Casinha durou entre 2020 e este 2023 que agora termina. Se não fosse a boa vontade da equipa e dos atores, que, segundo o realizador, não receberam muito para entrar no projeto, o filme nunca teria visto a luz do dia. “Não foi um processo fácil. É triste porque dedicámos muito tempo a isto de forma precária. Foi feito por amor.”
Alega que fazer cinema em Portugal é sinónimo “de ser-se pau para toda a obra”. Produtor, realizador, vendedor, copy e publicitário. O filme tem estado a ser — e muito, promovido nas redes sociais através de diferentes iniciativas. Foi isso que foi fazer a Cannes ou a Espinho. A ideia surgiu na pandemia, o apoio financeiro nunca apareceu da parte do Instituto do Cinema e Audiovisual. Conta, isso sim, com investimento do município de Baião que mostrou interesse e com a coprodução da Caracol Studios, Kurious Studios e da Movie Monkeys . “Submeti mil vezes ao ICA sem sucesso”, argumenta.
Se o financiamento público português não chegou como desejava, António Sequeira e a sua equipa ainda se lembraram de lançar uma campanha de crowdfunding na plataforma Kickstarter, que reuniu cerca de 25 mil euros para pós-produção. Um anónimo que viu o filme lá fora doou, sozinho, três mil euros. Por cá, asseguraram a distribuição da Pris Audiovisuais. O realizador não quer “lançar os foguetes antes da festa”, mas tem confiança de que vai conseguir rumar contra a maré de ausência de espectadores nas salas nacionais. “A dificuldade aqui é a burocracia de tudo isto, o sistema da nossa indústria é fechado, uma muralha de financiamento muito bem protegida. Não é aberta a ‘estrangeiros’ que não são do circuito e que trazem ideias diferentes. Isto não acontece só na área do cinema. Quem está no poder não quer mudança”, afirma.
Nota-se que António Sequeira quer apontar para algo ambicioso. Mune-se de referências internacionais, sobretudo norte-americanas, como Noah Baumbach, Richard Linklater, ou mesmo Francis Ford Coppola, que antes de ter dinheiro para fazer O Padrinho, decidiu avançar na mesma. Em A Minha Casinha, primeira longa, percebem-se as ideias, a vontade de romper com um certo padrão, mas, curiosamente, a concretização não foge muito dos tais filmes comerciais nacionais. “Queria retratar esta realidade de quem é deixado para trás, de como os pais ficam quando os filhos se vão embora. Teve de ser ajustado ao que conseguíamos fazer. Arriscámos ao filmar durante um ano para termos todas as estações. Por ser tão pessoal é que acho que se torna universal. Quando tentamos ser universais não tocamos ninguém”. A vontade do realizador do Porto é ficar a trabalhar no circuito português, mas “será possível fazer cinema no país estando fora do sistema?”, pergunta.