Num tempo em que o entretenimento vive muito de repetir sucessos e replicar fórmulas, o caso de Industry apresenta-se como curioso. Isto porque ninguém lhe pediu para ser o sucessor de Succession. Tal como ninguém pediu para Succession ser o sucessor de Guerra dos Tronos (falamos de impacto, de espaço, nem por isso falamos de narrativas). No meio destes títulos, há uma grande diferença: Succession tinha o star power e as ferramentas todas para assumir a posição de Guerra dos Tronos; Industry não estava minimamente convencida do seu lugar. Nem quem a ela se dedicou sem nada saber. E, contudo, aqui estamos.
É provável que nos próximos dias, após a estreia da terceira temporada (acontece na segunda-feira, dia 12, na Max), seja fácil encontrar artigos sobre como Industry ocupou o lugar de Succession, como é “uma das séries mais importantes desta década” e — clássico — “a melhor série que não está a ver”. Tudo isso é (ou pode ser) verdade. Se já viu alguma coisa — ou tudo — das duas temporadas anteriores, poderá achar que não se está a falar da mesma coisa ou que é um exagero. Se nunca viu, ou ouviu falar, o ceticismo será amigo deste súbito entusiasmo.
Estas coisas acontecem quando menos se espera. Os fenómenos culturais, os episódios que definem momentos na perfeição, estão à frente do marketing, sobretudo numa indústria que só apoia o risco quando este já não o é. A surpresa em Industry é que soube crescer dentro dela própria: abdicou do que era para ser outra coisa, aceitou a evolução das personagens, não as prendeu a uma fórmula e deixou-as sair da tal “indústria”, isto é, dos trâmites do mercado financeiro, um dos temas da série.
[o trailer da treceira temporada de “Industry”:]
Quando Industry se estreou no final de 2020, foi um bálsamo abençoado pelo timing. O primeiro episódio era realizado por Lena Dunham, nome serviu para vender o começo: a máquina promocional falava em “nova série de Lena Dunham”, quando isso não era verdade. Arrancava com um grupo de jovens prestes a começar a carreira no mercado financeiro nos escritórios de Londres da Pierpoint & Co. A forma como se saiu do primeiro confinamento e se pensou no trabalho durante aqueles meses — através do “work-life balance” ou da mão cheia de outros estrangeirismos que se seguiram — tornou Industry atrativa. De repente, ali estava uma série sobre a relação tóxica com o trabalho, sem vergonha e com uma velocidade estonteante que servia o mundo que estava a representar. Era como um prego no caixão: “não quero voltar para este tipo de trabalho”, pensaram muitos.
Só que isto acontecia fora das regras do “drama adulto”. Industry brincava com as fórmulas, metia Gossip Girl no mercado financeiro londrino e deixava a coisa jogar por si mesma. A representação do luxo, da luxúria, do excesso, da falta de empatia, parecia fora de tempo, contudo, cheirava a real, em parte porque os criadores — Mickey Down e Konrad Kay — fizeram parte desse mundo noutra vida. A primeira temporada foi um pequeno fenómeno de culto. A segunda, estreada dois anos depois, metia todo o stress da primeira numa misturadora, despejava café, whisky e cocaína lá para dentro e pedia-nos, depois, para ter calma. Quem ficou para a ver sentiu-se respeitado.
Era um contínuo, muito melhor do que a primeira, porque concretizava aquilo que a primeira só expressava em rebeldia. E apesar de ser uma série em volta de várias personagens, Harper Stern (Myha’la Herrold), a jovem trader que magnetiza desde o primeiro segundo, continuava a ser nuclear. Tudo — ainda — girava à volta dela. As histórias de Yasmin (Marisa Abela), Robert (Harry Lawtey), Augustus (David Jonsson) e, noutro patamar, Eric (Ken Leung), entre outros, existiam, eram sólidas e consolidadas, mas o show era de Harper.
Esta terceira temporada quebra com isso. Junta dois atores ao elenco para gerarem dissonância, Kit Harington (o Jon Snow de Guerra dos Tronos) e Sarah Goldberg (a Sally de Barry). Também sai dos escritórios da Pierpoint e do método de replicar o trabalho no mercado financeiro como um desporto. Cresce para lá da ideia de protagonista e manifesta algo que tentou no passado mas nunca até agora tinha feito assim tão bem: tratar todos por igual. Pode alegar-se que Yasmin é a protagonista desta temporada — até pela forma como foi conquistando posição na temporada anterior —, mas na realidade é “só” uma âncora para justificar todas as transformações que ocorrem nestes oito episódios de Industry.
A beleza da série passa pela concretização, palavra em que tantas outras falharam: é cruel porque sim, porque aquele mundo assim o manda. Por isso, não há simpatia, empatia, o inesperado acontece sem sobressalto: faz parte. É tratado como outra coisa qualquer, quando Industry espeta a faca e tem prazer, não nos diz que tem prazer, percebe-se. Quando uma personagem anuncia a outra que o mundo está a mudar, algumas cenas depois, essa personagem já saiu desse lugar e está a jogar outro jogo, noutra realidade. Faz dessa rapidez uma coisa de perceção, daquele mundo financeiro, onde o dinheiro — o fazer dinheiro — toma o lugar de todas as outras coisas.
Por ser como é, não há episódios notáveis em Industry. Não se faz de crescendos, não constrói momentos, não vive da expectativa do que vai acontecer, existe na explosão do momento, de coisas que acontecem e que não precisam de ser explicadas ou entendidas (até porque, se não trabalhar na área financeira, é muito pouco provável que esteja inteirado de todas as dinâmicas do que está a ver). Cada cena é um carro que nos ultrapassa pela direita. Industry vive à custa de um grupo de personagens que suga a alma a tudo, mesmo quando nos convencem do contrário. Não há finais felizes, não é isso que procuram. Estão sempre ligados ao que vem a seguir, como se o dinheiro fosse a imortalidade.
Enquanto isto tudo acontece, num mundo distante da maioria, Industry conduz-nos por uma leitura depurada do que é o mundo hoje, do que realmente importa, sem rodriguinhos. É um hino à autodestruição. O final da terceira temporada executa o plano sem cerimónias, tudo acontece ao ritmo do momento, as coisas mudam numa questão de segundos e deixa-se de fechar sobre si mesma: abre-se ao mundo. Abraça a ideia de que criou um conjunto de regras para televisão e que este é o jogo que agora vamos jogar. Salta para a maturidade, fá-lo de um modo impercetível à espera que o mundo a veja tal como ela é: a série de que se deveria estar a falar. Mesmo que se goste muito das duas primeiras temporadas de Industry, mesmo que se tenha passado os últimos quatro anos a pregar a todas as capelinhas as suas qualidades, este salto, esta tomada de posição, era imprevisível. Tal como aquilo que acontece dentro dos episódios. Industry é a lição de entretenimento que não pedimos em 2024. Porém, aqui está, pronta para ser o tópico do dia.