Mano Shottas estava a fazer um direto no Facebook, a filmar a ação da polícia contra manifestantes na principal fronteira de Moçambique com a África do Sul, quando foi baleado nas costas. O jovem blogger criticava as forças de segurança que lançavam gás lacrimogéneo contra casas com crianças quando de repente se ouvem tiros, ele diz que foi alvejado, as imagens desaparecem, pede socorro enquanto o ecrã está negro, depois surge o rosto de Shottas em dor a dizer que foi atingido, que os disparos continuam, e novamente o ecrã negro com uma voz débil a dizer que está a morrer.
Algumas pessoas, como a ativista moçambicana Cídia Chissungo, conseguiram gravar o direto e partilharam-no nas redes sociais, como a X, guardando as últimas palavras que se ouvem do blogger.
“Há ali crianças. Eles estão a atirar gás lacrimogéneo. Eu não sei em que país estamos a viver. Não posso continuar a gravar… recebi um tiro… pessoal me balearam. Socorro, socorro…”. Chega o som de tiros, vozes a aproximarem-se, ouve-se Shottas: “Socorro, balearam aqui atrás, não me consigo virar. Pessoal levei tiro, levei tiro e eles continuam a disparar, eles continuam a disparar” repete o blogger numa voz cada vez mais fraca. “Fui alvejado”, continua. Noutros vídeos divulgados ainda se ouve, já com o ecrã preto, o blogger a dizer: “Estou a morrer…”
This video shows the exact moment a man was shot 1 hour ago in Ressano Garcia (border with South Africa) while doing a Facebook Live.
Ressano was under Tear gas. The man shot (Mano Shotta) was on the streets Live on Facebook criticizing the way security forces were… pic.twitter.com/VzYcJrCtst
— Cídia Chissungo (@Cidiachissungo) December 12, 2024
Adriano Nuvunga, diretor do Centro para a Democracia e Direito Humanos (CDD), que já está a apoiar juridicamente a família do blogger, confirmou ao Observador que o jovem acabou mesmo por morrer. “Foram os militares da Unidade de Intervenção Rápida que dispararam para proteger os camiões da empresa de transportes do ministro das Obras Públicas, Carlos Mesquita”, acusou o advogado.
Isto é crime político
Trata-se “do desrespeito mais profundo pelos direitos humanos, o direito à vida, que é tudo o que as pessoas têm”, insurge-se o também professor. “Este jovem baleado perde a vida a fazer uma ‘live’ num contexto em que os militares estavam lá para proteger a fronteira como um todo, é verdade, mas em particular para proteger os camiões do ministro das Obras Públicas que é ao mesmo tempo empresário, tem camiões que transportam crómio”, insiste. O ministro, argumenta Adriano Nuvunga em declarações à Rádio Observador, “está a perder dinheiro porque os moçambicanos estão a manifestar-se e ele usa o seu poder para os militares irem matar os moçambicanos para proteger os seus interesses, isto é crime”.
Repetindo que a morte do blogger constitui um “crime”, avisa que “as entidades internacionais têm que ser notificadas sobre este tipo de crime da UIR, da polícia, dos militares, para protegerem os interesses daqueles que estão no poder. Isto já extravasa o âmbito da repressão das manifestação, isto é um crime político, que tem que ser responsabilizado ao mais alto nível.”
O que aconteceu “tira a respiração a qualquer pessoa que ouve o vídeo, isto é feito para proteger os interesses daqueles que provocaram a manifestação, que são os ministros, os governantes que causaram as situações que levaram os moçambicanos às ruas. Isto aqui tem que ser responsabilizado”, reitera.
O líder da Organização Não Governamental, que já foi várias vezes ameaçado de morte, afasta a hipótese de ter sido uma bala perdida. “A balística vai mostrar que é claramente uma bala disparada a queima-roupa, que quis silenciar um blogger que estava a reportar a situação. Este jovem não saiu para se manifestar mas para reportar o que se estava a passar”.
Nuvunga dá mesmo o seu próprio exemplo, que tem uma página de Facebook onde acompanha as manifestações, onde o CCD transmite em direto os protestos. “Podia ter sido um colega do CCD. Não é bala perdida, é premeditado, é orquestrado por aqueles que estão no poder nomeados por Nysui [o Presidente da República] para mandar atacar, matar moçambicanos, para proteger os seus interesses”.
Referindo mais de 120 mortes causadas nestes protestos “pelas balas da polícia”, acrescenta que “nunca houve qualquer pronunciamento do governo”. Para o jurista, este é “um governo que ataca, manda matar e é insensível à situação de pesar, de dor, causado pelas balas que deveriam ser utilizadas para proteger, não para matar”.
Morte de blogger causa revolta popular
Depois de Shottas ter sido baleado as pessoas que estavam no local “revoltaram-se ainda mais”, confirmou ao Observador Adriano Nuvunga, incendiando algumas infraestruturas.
“É mais um ato bárbaro e a polícia deve responder por ele. Estamos a organizar uma ação contra o Estado nesse sentido. É mais uma prova que é ação violenta da polícia que gera revolta nas pessoas”, adiantou por seu turno André Mulungo, editor do boletim do CDD à agência Lusa.
A fronteira de Ressano Garcia tem estado bloqueada nos últimos dias pelos manifestantes que contestam os resultados eleitorais de 9 de outubro, impedindo a entrada em Moçambique dos camiões vindos da África do Sul.
Ainda esta quinta-feira, o ministro dos Transportes e Comunicação, Mateus Magala, disse que “algumas ações estão em curso para proteger os corredores”. O governo está a trabalhar com o homólogo sul-africano para “tentar criar cinturões de proteção ao longo do corredor do Maputo, desde a fronteira de Ressano Garcia até ao porto de Maputo, para assegurar que a mercadoria continua a fluir da África do Sul para mercados internacionais e para outros países”.
Há mais de 50 dias que Moçambique é abalado por manifestações e violentos confrontos com a polícia que já causaram mais de 120 mortes segundo organizações não governamentais. Esta onda de protestos a que muitos chamam “revolução”, tem sido convocada por Venâncio Mondlane, o candidato independente que diz que ganhou as eleições enquanto a Comissão Nacional de Eleições dá a vitória a Daniel Chapo apoiado pela Frelimo, partido no poder há 49 anos.
Na quarta-feira terminou a quarta fase, a “4×4”, desta contestação nas ruas, que foram uma vez mais marcados por muita violência de parte a parte. A polícia reprime brutalmente os manifestantes que por sua vez incendeiam esquadras, sedes da Frelimo e infraestruturas e chegam a linchar polícias que mataram pessoas nos protestos.
No domingo, depois de Venâncio Mondlane, que fugiu do país por razões de segurança, anunciar no Facebook que tinha sido vítima de nova tentativa de assassinato, os seus apoiantes reagiram encerrando a Ressano Garcia e atacando duas centrais termo-elétricas na região.
Protestos em Moçambique. “O poder está na rua” e adivinha-se um “Natal violento”
Segundo o Comando geral da Polícia da República de Moçambique, morreram nos últimos sete dias 16 pessoas, entre as quais quatro membros da polícia, tendo 73 ficado feridas.
Dezasseis mortos e 73 feridos nos protestos da última semana em Moçambique