É o quinto livro livro de Paul Lynch e o primeiro a ser publicado em Portugal, com excelente tradução de Marta Mendonça e edição da Relógio d’Água, e recebeu o Booker Prize do ano passado. Aqui, Lynch lança um thriller com uma prosa que puxa para o estilo saramaguiano: parágrafos longos, diálogos seguidos. Lê-se na vertigem claustrofóbica que certa prosa dá.

Ao longo da leitura, percebe-se que a linguagem impõe um tom de clausura. O ambiente é negro, as personagens vivem fechadas, sufocadas. Isto irá entender-se pelo decorrer da acção, mas a opção estética também impõe essa sensação. Quase sem pausas, com descrições imagéticas e sensoriais, o romance cria uma República da Irlanda caída no totalitarismo após a ascensão do Partido da Aliança Nacional, de extrema-direita. O processo é paulatino, até que parece já não haver nada a fazer: responde-se ao sindicalismo com violência, visitas noturnas, desaparecimentos, levando ao início de uma guerra civil e à total erosão das liberdades individuais. E, de repente, é a partir da Europa que se vê a vida de países em guerra, onde o mar é fuga do que se passa em terra.

Em Dublin, a polícia à paisana – parte da Garda National Services Bureau (GNSB), força de segurança que serve os interesses do governo – bate à porta da residência dos Stack, procurando Larry, sindicalista, que não está. A esposa informa-o a posteriori, ele não parece preocupado com a procura. Pouco depois, Larry, após convocação, presta depoimentos ao GNSB e então desaparece, deixando Eilish responsável pelos quatro filhos dos dois, passando por uma vida de pânico: primeiro, a dúvida; depois, a certeza do terror psicológico, com a vigilância constante e o domínio absoluto por parte do governo, sempre impune. Além disso, o recurso a tecnologia, quase omnipresente e omnipotente, criando uma teia claustrofóbica a que não se pode fugir, traz para a narrativa preocupações contemporâneas que se prendem com a possibilidade de controlo, aqui testadas, incluindo a disseminação de notícias falsas e de um discurso político exacerbado. Aos poucos, os cidadãos começam a ter cuidados com essa monitorização tecnológica, incluindo o uso dos telemóveis, num cenário que faz lembrar o fascismo, estando ainda instalado um estado de excepção. Sendo promulgada a Lei dos Poderes de Emergência, é possível às forças oficiais matarem sem julgamento, suprimirem direitos, controlarem, prenderem cidadãos.

Neste contexto, Eilish tem de proteger a família num cenário de guerra, inclusive para ir ver um filho ferido ao hospital, sob o olhar atento dos snipers, pronto para disparar sobre os civis. O cenário chega a ser apocalíptico, as figuras discursivas também. Ao longo do enredo, cogita-se a fuga da Irlanda, sabe-se lá para onde, mas Eilish vai resistindo, entre a negação e o pânico, enquanto funciona como elo de um estado político global. É que, através da vida de uma casa, de uma família, testam-se os efeitos do poder totalitário, que é mais do que poder político: é definição de família, é destruição de laços, é mudança de destinos, é moldagem de estados emocionais. A prosa é veloz, fundindo texto e contexto, e mostrando o humano à luz da sua condição, sempre em batalha com o poder, a violência policial, a impunidade de quem manda e impõe.

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Título: “Canção do Profeta”
Autor: Paul Lynch
Tradução: Marta Mendonça
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 248

À medida que a vida familiar se reformula, e que a vida quotidiana se transforma numa luta, o romance passa a ter sabor de vida de todos os dias. Aliás, tal parte da própria estratégia narrativa, uma vez que o autor, ao invés de começar logo no epicentro do drama, começa a fechar a teia à medida que o enredo se desenvolve, de forma a que a instabilidade política, ao pousar, já não pareça tão fora do comum. A páginas tantas, já tudo parece inevitável, já não parece possível cogitar-se outro destino, uma vez que nunca se entende em que momento em que podiam ter sido trocadas as voltas. Assim, o enredo avança e a Irlanda que conhecemos transforma-se noutra coisa, em restos de guerra e mais nada, num espaço temporal impreciso.

O ritmo está em grande parte bem doseado, com a polícia a asfixiar devagar, e a prosa cumpre o seu papel, com parágrafos longos que sabem a escuro. O calcanhar de Aquiles do livro será o tratamento do ritmo na linha final do romance. De início lento, acelera com acções em catadupa na hora do remate. Nisto, o leitor chega a estranhar: inicialmente, Eilish recusa-se a largar a sua casa, o seu país, até porque ainda espera o regresso do marido, num cenário em que o pai começa a mostrar sinais de senilidade, precisando de cuidados, e em que o filho mais velho se junta ao movimento de resistência. É uma decisão inglória, porque, do outro lado, há a hipótese de procurar uma vida melhor para os filhos que lhe restam. Quando finalmente aceita a partida, o enredo torna-se quase vertiginoso, o que impede o leitor de ver aquele lado, transformando uma acção definidora quase numa casualidade, não permitindo a quem lê ver o que é feito da personagem após a vida lhe ter trocado as voltas.

O romance, ainda que mais voltado para os amantes de thrillers, não descura o trabalho da linguagem funcional, que casa bem com a acção, nem o de desenvolvimento psicológico das personagens. Tudo somado, cria um ambiente ansioso para quem lê. Tal como com as personagens, a teia forma-se devagar, sendo difícil respirar, sair de lá.  Claro, tudo isto terá semelhanças com a vida real – e, em simultâneo, uma diferença fundamental: o lugar da acção, já que a história acontece num país do Ocidente. Assim, findo o romance, o paralelismo fica claro: Eilish, que começara a narrativa tendo uma vida confortável, uma casa, marido e filhos, dá por si sem tecto e à procura de abrigo, sem rumo e sem saber o que fazer, expulsa de um país transformado nos restos que os bombardeamentos deixaram.

O romance é compacto e cria uma realidade, ao invés de a reproduzir. Parte do mundo conhecido, lançando uma hipótese e calibrando-a de seguida. Como a prosa é veloz, a leitura também voa como um foguete. E, no meio disto, é inevitável pensar-se em qual será o ponto em que se devia ter evitado o destino.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.