Está mortinho da silva!

É assim que começa a discussão do famoso “sketch do papagaio” da série da BBC Monthy Python’s Flying Circus (1969-1974), na qual um cliente insatisfeito regressa a uma loja de animais, tal e qual uma mercearia dos anos 70, para reclamar que o papagaio que comprou vivo está, afinal, morto.

Apesar das evidências (e do animal morto no fundo da gaiola), o comerciante recusa-se a admitir a morte do animal, insistindo que a falta de reação do bicho se deve pura e simplesmente às saudades. A conversa acaba por levar a uma discussão onde, sem nunca referir a palavra “morte”, o dono do papagaio tenta deixar bem claro que o animal há muito que foi ter com os anjinhos:

“Ele não está com saudades! Ele seguiu em frente! Este papagaio foi para o céu! Deixou a sua existência! Soltou um último suspiro e foi ter com os anjinhos! Esticou o pernil! Roubado de vida, descansa agora em paz. Se o senhor não o prendesse ao poleiro, ele agora estaria a bater as patinhas! Os seus processos metabólicos passaram à história. Partiu para o seu voo eterno! Vai conviver com as minhocas! Ele livrou-se do seu corpo mortal, acabou o último ato, e agora é uma estrelinha lá no céu! Este papagaio já era!

https://www.youtube.com/watch?v=npjOSLCR2hE

Apesar de ter sido escrito originalmente em inglês, o diálogo é a prova viva de que, qualquer que seja a língua, existem sempre formas alternativas de falar sobre a morte sem nunca ter de referir a palavra. Mas porquê?

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Desde os tempos mais longínquos que o medo da morte fez com que os falantes procurassem evitar pronunciar (ou escrever) o seu nome. Era (e é) um tabu, que prevalece até aos dias de hoje sob a forma de centenas de eufemismos e disfemismos que, de uma maneira ou de outra, querem dizer a mesma coisa — morrer, bater a bota. Das mais eruditas às mais jocosas, irónicas ou cruas, a língua portuguesa oferece expressões para todos os gostos, que são um reflexo da incrível capacidade de invenção dos falantes e de adaptação da própria língua.

Dona Morte, um velho tabu

Os tabus levam a que determinadas palavras ou expressões sejam abandonadas ou substituídas por termos que procuram suavizar (dentro do possível) uma realidade desagradável. A estes termos chama-se eufemismos, um recurso estilístico muito popular no português mas também noutras línguas, como o inglês. A popularidade dos eufemismos prende-se com o facto de estes fazerem “parte do jogo constante de adaptação dos falantes à situação de comunicação”, explicou ao Observador João Paulo Silvestre, lexicólogo e diretor do Camões Centre for Portuguese Language and Culture do King’s College, da Universidade de Londres. “A variedade de eufemismos e disfemismos é imensa e dominar o seu uso é uma competência típica dos falantes nativos.”

Os eufemismos fazem parte do léxico (ou vocabulário) de uma língua, e o seu uso é “culturalmente aprendido, da mesma forma que aprendemos que palavras usar em determinada situação”. É isto que explica a necessidade de recorrer a eles para falar da morte e de outros temas tabu, como as doenças potencialmente fatais e o sexo (e as partes do corpo a ele associadas), apenas para referir alguns.

“Se sentimos necessidade de usar eufemismos para falar da morte, é porque na cultura a que pertencemos evitar a palavra é um sinal de respeito pela dor do nosso interlocutor dos falecidos (e cá está um uso eufemístico). Assim, os soldados mortos são baixas ou vítimas, as crianças que morrem jovens são anjinhos, a referência ao cônjuge que já morreu é o seu marido/a sua esposa que Deus tem. Linguisticamente, são sinónimos disponíveis para diferentes contextos”, salientou João Paulo Silvestre.

Mas, se por um lado, os eufemismos servem para atenuar uma realidade, os disfemismos procuram fazer exatamente o contrário — servem para intensificar de forma pejorativa uma determinada situação. “Em rigor, algumas expressões que geralmente se classificam como eufemismos (porque evitam a palavra), podem ser usadas disfemicamente”, referiu o lexicólogo. Por exemplo: “Se morrer é um termo neutro, podemos considerar como eufemismos palavras ou expressões como falecer ou já não está entre nós, está no eterno descanso. Por outro lado, podem ser potencialmente ofensivas expressões como está a fazer tijolo ou bater a bota.”

Tudo depende do contexto. “Existe um eufemismo por resposta a um disfemismo, ou seja, se uma palavra tem uma conotação negativa ou é potencialmente ofensiva para o nosso interlocutor, temos de encontrar um sinónimo que diga exatamente o mesmo, mas sem ofender”, explicou o linguista. “O Disfemismo e o eufemismo fazem parte da variedade linguística.”

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Isto significa que o surgimento de novos eufemismos ou disfemismos está intimamente ligada com a perspetiva que os falantes têm do mundo que os rodeia e, principalmente, com os tabus que condicionam o seu dia-a-dia. Por esse motivo, eufemismos que foram criados há muitos anos podem já não fazer sentido nos dias de hoje (ou vice versa) e a sua popularidade pode já não ser a mesma. “Há uma dezena de anos era muito comum que a morte de uma pessoa de cancro fosse publicamente anunciada como faleceu vítima de doença prolongada, isto porque proferir a palavra cancro era mau agoiro”, exemplificou João Paulo Silvestre. “Num espaço curto de tempo, a necessidade desse eufemismo parece ter diminuído e já é frequente que se noticie a causa da morte com todas as palavras.”

Palavras para todos os gostos

Falar da morte a partir de eufemismos não é coisa de hoje. No livro Words in Time and Place. Exploring Language Through the Historical Thesaurus of the Oxford English Dictionary, de 2014, o linguista britânico David Crystal chegou à conclusão que, só no vocabulário do inglês antigo, existiam 40 formas para “morrer”. “Não podemos ter certezas quanto às nuances de significado que diferenciavam todos os verbos, mas é óbvio que os anglo-saxões estavam tão preocupados como nós em encontrar diferentes formas de falar da morte”, escreveu Crystal.

Infelizmente, nunca houve ninguém que se desse ao trabalho de contar as formas alternativas de falar da morte em português (antigo ou moderno), mas o número de palavras e expressões não deve ser menos surpreendente. Afinal de contas, a morte parece ser um tabu universal. E há expressões para todos os gostos.

Na obra O Eufemismo e o Disfemismo no Português Moderno, Hein Kröll chamou a atenção para o facto de a ideia de morte ser muitas vezes expressa em português por um simples pronome (também ele um eufemismo) que “serve para evitar a brutalidade do termo próprio”. Um exemplo é já lá está (muitas vezes ouvida na variante coitadinho, já lá está!), onde o advérbio substitui o substantivo morte.

Esta também surge muitas vezes personificada e representada por uma mulher vestida de preto, para a qual existe um rol infindável de nomes — umas vezes é a desdentada, outras a grande dona, a grande garça, simplesmente a negra ou até a Sem-Perdão. Outro nome muito comum é Dona Morte, como lhe chama António Nobre na “Balada do Caixão”. Para o poeta, a morte também é uma mulher.

“O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte…”*

O poema de Nobre é, aliás, uma boa fonte de eufemismos. Os fatos de pau a que o poeta se refere são, nada mais nada menos, do que caixões, de “mogno, debruados de veludo” ou de “pinho do norte”. Na linguagem popular, estes são também referidos como camas à francesa, fatos de madeira ou simplesmente (e de forma mais óbvia) as quatro tábuas. Isto porque, não é só para palavras e expressões como estar a morrer, morrer, ou morto que existem alternativas.

O cemitério pode também ser chamado de fábrica do tijolo, quinta das tabuletas, dormitório ou quintal do muro branco. Sobre quem está enterrado, pode dizer-se que está debaixo de sete palmos de terra, na terra da verdade ou na terra fria. Até os homens que carregam os caixões, os cangalheiros, têm um nome alternativo — gatos-pingados. Umas expressões são de estilo mais culto, e outras mais jocosas e irónicas. Enfim, há de tudo.

De acordo com Heinz Kröll, a religião é um dos principais motivos que levou (e leva) os falantes a procurarem formas de substituir a palavra morte. “Assim, a perspetiva de uma vida além-túmulo é muitas vezes expressa por eterno sono ou fim dos seus dias“. De influência claramente religiosa são expressões como dar a alma a Deus, dar a alma ao Criador, prestar contas a Deus, entregar a alma a Deus ou até ao diabo — porque, como é evidente, nem todas as almas sobem ao Céu. Muito comum é também o célebre que Deus o tenha.

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Para matar existem também inúmeras expressões alternativas. “Ao lado de matar, assassinar, verbos que exprimem o processo de matar de um modo geral, temos despachar, eliminar, executar, liquidar, suprimir com matizes diferentes”, escreveu o autor. Os verbos e expressões que derivam de fogo, como fuzilar ou passar pelas armas, são também muito comuns. “Para designar o ato de assassinar, empregam-se muitos disfemismos como por exemplo acabar-lhe com o pio, arrebentar ou rebentar com alguém e dar cabo de alguém, dar cabo do canastro a alguém.” A lista é interminável, e no seu livro Kröll referiu ainda expressões como partir em postas ou por as tripas ao sol.

“Consegue-se explicar? A metáfora está perdida”

Apesar da quantidade de expressões que existem para falar sobre a morte, morrer e até mesmo matar, é difícil dizer qual a origem de grande parte delas. A expressão o corpo está em câmara ardente é das poucas. De acordo com João Paulo Silvestre, câmara ardente vem do francês chapelle ardente, expressão que servia para descrever a capela iluminada por velas onde costumavam decorrer os velórios.

Porém, como nem todas as igrejas têm uma capela, estes também podiam acontecer num outro espaço, conhecido por câmara. Por esse motivo, tornou-se comum chamar ao local do velório câmara ardente. Ou seja, a expressão é de origem francesa, mas sofreu adaptações ao ser traduzida para português.

Mas, regra geral, “é difícil explicar as expressões ligadas à morte porque são idiomáticas”, explicou o lexicólogo. “Ou seja, estão perdidas no tempo, cristalizadas, e o seu significado nem sempre é possível de descodificar pelo sentido das palavras que as compõem. O que significa bater a bota? Não sei, e duvido que se encontre uma boa explicação“.

Para João Paulo Silvestre, o facto de a origem de muitos eufemismos se ter perdido não tem a ver com o sentido original. Isto é, “não é o sentido original que se perde, é a capacidade de perceber a metáfora”. “Se eu lhe disser: ‘Perceber esta expressão é andar aos bonés’. Qual é o sentido original? Consegue-se explicar? A metáfora está perdida.” Mas podemos sempre reinterpretá-la, fazendo com que se assemelhe ao significado que conhecemos — por estar perdido ou estar desorientado. E essa é uma das muitas maravilhas da língua.

“Ó meus Amigos! salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai! do que eu!”*

* Excertos do poema “Balada do Caixão”, de António Nobre